Com fiar, confiar

Juliana Tavares
Clube da Escrita Afetuosa
2 min readMar 22, 2021

“Confiar

Amortece

A trama

Complexa

Da existência”

No Cerrado faz frio quando o sol se esconde. As noites são frescas, assim como as manhãs. Mesmo assim, elas já estão de pé, com os fios no tear criando peças e compartilhando histórias. A vida não deixa de ser como fios que, tecidos, nos vestem de oportunidades e experiências. Essas mulheres, em sua maior parte octagenária, aprenderam esse ofício com suas mães, avós e bisavós. É um universo bastante feminino, coletivo e de muito cuidado, partilhando palavras, experiências e rituais.

As fiandeiras, tecelãs e bordadeiras foram uma grande surpresa na minha imersão no sertão. Me entristeceu saber sobre o êxodo dos jovens dessa região e o desinteresse deles em manter acesa essa cultura, colocando em risco conhecimentos tradicionais centenários. A vida de uma fiandeira pode ser compreendida no ato de tecer e destecer, assim como a vida em que, frequentemente, temos que recomeçar.

Rogério está tendo que se reinventar. Após a morte de sua esposa ele e seu filho de 12 anos se veem em reestreias na vida. A ausência de Lizandra se faz no cotidiano, desde a ausência de seu sapato do meio da sala, o que o deixava irritadíssimo, até no dia em que ele foi na praia e não tinha quem passasse protetor solar nas suas costas. O luto se mostra em pequenas coisas. O tear da vida, neste momento, não se mostra generoso, mas tece um novo caminho que também terá suas belezas, suas tristezas e alegrias.

O cuidado paliativo cuidou da Lizandra desde o diagnóstico de sua doença até sua morte. E agora cuida de Rogério. Isso porque é uma área de atuação que atende também os cuidadores. Acompanhar alguém doente gera uma síndrome chamada Estresse do Cuidador. Estes têm maior chance de desenvolver hipertensão, sobrepeso, insônia. Os planos terapêuticos para eles envolvem muito a atuação da equipe multiprofissional que não só acolhe suas dores como tenta traçar planos que permitam respiros. E isso se segue durante o período do luto, em geral pelo menos no primeiro ano da perda.

Hoje vivo momentos de fios enovelados que, em alguns dias, parecem me sufocar. Tentei desatar alguns nós mas percebi que muitos deles não podem ser desfeitos. Optei então por aceitá-los e ir adiante, aprendendo a cada vivência. Mas tem dias que são mais difíceis. Neles, olho para a bolsa tecida no sertão e bordada por uma menina de nove anos e me encanto com a frase de João Guimarães Rosa: “O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”.

Abro a porta de casa e sigo em frente.

--

--