Como se fosse verdade
Ela não sabia escrever ficção. Desde sempre, levava a verdade para o papel e só a verdade. Tinha feito um pacto com si mesma e com o leitor. Nenhuma linha nas páginas dos seus livros seria mentira. Ela não ousava ser infiel com a vida. A escrita era seu refúgio sagrado que nenhuma inverdade iria macular.
Ela entregou o manuscrito do segundo livro para o terceiro namorado como quem oferece a verdade extraída a conta-gotas do coração. Estava ali, exatamente como aconteceu. Entregou e deixou ele sozinho com o caderno em espiral de capa azul-céu onde tudo se revelava. Ele não acreditou. Depois de tanto pedir para espiar o que ela passou meses escrevendo, o secreto seria lido.
Era o último dia de férias dos dois. Fim de um verão invernado demais. Mas, naquele dia na praia, o sol nasceu como se não houvesse amanhã. Mesmo assim, ele não se preocupou com o protetor solar, nem teve a preocupação de se proteger das palavras escritas em caneta preta.
Leu as 80 páginas de um fôlego só, acompanhado por dez latinhas de cerveja. Terminou engasgado, com um vermelho-camarão no peito, meio zonzo, sufocado até. Nem percebeu o sol caminhar e quase desaparecer do céu. Ali não estava a verdade. Aquele que estava apertado e diminuído nas páginas não era ele. Só poderia ser outro.
O namorado reconhecia os cenários, mas não se lia em nenhum dos diálogos. Ele nada entendeu porque sempre ouviu, da boca carnuda da namorada, que ela não sabia escrever ficção. Sentiu ciúmes daquele personagem que estava com sua mulher naquele manuscrito que ia virar livro (mesmo que, na sua leitura, o homem fosse medíocre).
Levantou-se da espreguiçadeira. A escritora-namorada precisava se retratar. Se aquele fosse ele, ela teria que reescrever tudo. O livro estava vetado. Não se escreve mentira como se fosse verdade. Se aquele fosse outro, ela teria que revelar quem era aquele homem. O livro seria igualmente proibido. Não se escreve verdade como se fosse mentira.
Caminhou cambaleante até o chalé da pousada para dar o veredito do livro. Nada daquilo seria publicado. Encontrou a porta aberta e o guarda-roupa do quarto com vista para o mar, vazio. Só uma mala estava ali. Era a dele. Procurou por um bilhete. Uma carta.
Ela não havia deixado nada. Pressentiu sem nada querer sentir: a namorada tinha deixado ele só. Pensou que talvez aquela fosse mais uma das mentiras que ela ia contar, em algum outro livro, como se fosse verdade.