Continuar

Michele Caroline Benages
Clube da Escrita Afetuosa
2 min readAug 27, 2021
Foto: Christie Kim em Unsplash

Mariana sentiu a luz do sol em seus olhos. O amanhecer chegou devagar, antecedido por uma noite insone. Agora que o sol dava permissão para sair da cama, ela assim o fez. Seguiu a rotina à risca: alongamento, banho, café. Encarar o nada. Trabalhar. Encarar mais um pouco o nada.

Seus cabelos castanhos caiam em ondas opacas em suas costas. A falta de viço espalhava-se também por seu rosto — olhos fundos com olheiras pronunciadas, os lábios lutando entre curvar-se para cima durante as reuniões e pra baixo quando fechava a câmera.

Os dias juntavam-se no mesmo borrão disforme. No trabalho, as tarefas eram concluídas e os projetos, entregues. As reuniões eram feitas e as entrevistas, finalizadas. Mas nada disso tinha a participação ativa de Mariana.

O apartamento continuava o mesmo de sempre, só que agora com uma pessoa a menos. E muitos espaços a mais: no guarda-roupa, na estante de livros, na sapateira e no armário da cozinha. O vazio era um lembrete mais doloroso que as fotos na parede.

Mais um dia de trabalho termina e os questionamentos que mantém Mariana acordada a noite retornam. Eles seguem um caminho claro. Primeiro, ela se pergunta se poderia ter feito algo diferente. Depois, relembra o quanto tentou, em vão. Em seguida, sente raiva, que é melhor do que não sentir nada. Nos últimos anos ela não percebeu que seu ideal de vida era ser quem era até 6 meses atrás, quando deixou de ser. A palavra ainda soava herética em sua boca: divorciada. E, para fechar o ciclo, vem o pensamento que mais lhe machuca: ela teria feito algo diferente, se soubesse o fim?

Claro que não. Talvez devesse ter cultivado outros interesses na vida. Sonhos alheios à vida compartilhada. Talvez devesse ter formado quem é sem depender de algo tão frágil quanto o estado civil. Mas não era a única, era? Quantas pessoas se definem pelo lugar em que trabalham, pelo cargo que ocupam, pela profissão no diploma?

Todas essas reflexões, a princípio, não levam a nada. Só a mais uma noite insone.

Conforme as semanas passam, Mariana percebe uma linha de pensamento que anda em paralelo com a tristeza: a vontade de continuar. Continuar acordando e seguindo a rotina. O trabalho. A reconstrução. Dizem que quem faz a mesma coisa esperando um resultado diferente deve ser louco. Mas que outra opção Mariana tinha? Continuar em meio a tristeza era sim um ato de coragem.

Quando seu ideal de vida se quebra, não há nada a fazer além de recolher os pedaços e construir outro, diferente. Entender o que você quer da vida e o que a vida quer de você. Equilibrar esses pratos até que eles inevitavelmente caiam de novo.

Desafio 3: Escrever um texto a partir de um personagem.

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Michele Caroline Benages
Clube da Escrita Afetuosa

Vivo dentro dos livros. Quando saio deles, gosto de fazer lettering, escrever e atualizar o Bullet Journal.