De bar em lar; de lar em bar

Ana Rocha
Clube da Escrita Afetuosa
4 min readApr 24, 2022

Jovem, baixo, magro, leve. Não só de massa corpórea. Também de espírito. Circulava fluente pelas mesas do local, que tinha significados diferentes para cada um que o frequentava. Pro dono, empreendimento. Pros clientes, lazer. Pros demais colegas, ganha pão. Pra ele, era mais. Era lar.

Não importava passar a noite toda sem ver seus grandes amigos. Cantar as músicas sem ter alguém pra beijar no trecho mais romântico. Precisar se concentrar demais para registrar os pedidos mesmo em meio aos gritos, risadas e cantos desafinados.

Não importava não parar. A dor nos pés. Que nenhuma daquelas mobílias fosse sua. Estava muito mais em casa do que em seu pequeno apartamento-dormitório. Conhecia cada cantinho. Podia andar ali sem nada ver, que nem faz onde mora, quando acorda de madrugada e vai ao banheiro com os olhos quase cerrados, pra não perder o sono. Sentia-se à vontade naquele espaço, se identificava com ele. Era parte dele.

Ria quando alguém o olhava com pena por trabalhar como garçom. Sim, havia estudado, feito faculdade, dominava outros idiomas. A vida rotineira em escritórios não lhe cabia. Assim como o horário diurno.

Desde muito cedo aprendeu a reconhecer no comércio da família a sua mesa de jantar, de estudos, seu cantinho de descanso, a TV para assistir aos desenhos da época. Antes de Felipe nascer, aquele era o foco total da atenção dos pais. Quando a família cresceu, tentaram por alguns tempos se dividir — um em casa cuidando do pequeno, e outro no bar, cuidando dos negócios. Não funcionou pra ninguém. O casal ficava frustrado, e o filho também: queria comungar daquele espaço de união entre os três.

Felipe chegava logo depois da escola, já de banho tomado. Aproveitava o movimento baixo do início de noite para fazer seus deveres. O cozinheiro, sempre preparado com arroz e feijão para alimentar a equipe de trabalho, tratava de servir o menino para ajudar os patrões.

O movimento aumentava, a mãe circulava soberana pelo salão recolhendo pedidos e distribuindo simpatia. O pai ficava no balcão, organizando o que ela trazia, pra ser preparado e devolvido. Felipe ficava a seu lado, imitando com um caderninho e lápis. Aos olhos dele, era como se Miguel estivesse em um camarote, uma cabine de controle, de onde tudo via e coordenava. Os dois admiravam Helena, com sua leveza entre as mesas. Ali, ela flanava. Era seu palco, sua passarela. A casa ficava aberta até uma hora da manhã. Depois era fechar, organizar tudo, dormir só no meio da noite. As aulas à tarde favoreciam o descanso em família por boa parte da manhã.

E foi assim que o hábito de estar em um bar, de certa forma morar em um bar, foi incutindo no menino não um vício na bebida, como temiam alguns amigos mais conservadores, ou uma aversão a tudo aquilo, como qualquer adolescente pudesse naturalmente pressupor, mas sim a constatação natural de que aquele era seu habitat.

A paixão dos pais pela vida não foi suficiente para garantir a eles uma que fosse longa. Miguel sofreu um acidente. Helena amargou um câncer na sequência. O bar da família já não se mantinha em pé fazia alguns anos. Embora retomar o negócio não fosse uma possibilidade, seguir trabalhando na noite, em bares, passou a ser uma necessidade para se manter próximo do que os pais tanto amavam, do que aprendeu ao longo da vida.

Naquela noite, sem que soubesse nada desta história, Beatriz identificou em Felipe uma alegria peculiar. Acostumada a análises de perfis comportamentais de profissionais que se candidatavam a vagas em grandes empresas, sabia que aquela motivação intrínseca em trabalhar com paixão e leveza não era comum. Começou a puxar papo a cada novo pedido de drink. Tendo seguido à risca o confinamento que a pandemia impunha, aquela era uma das primeiras vezes que saía com os amigos nos últimos dois anos.

Felipe tinha uma habilidade incrível de ser simpático, conseguir conversar em meio à banda e vocais desafinados no salão, sem perder o foco do que tinha que ser feito. Não entregava um pedido errado. Empolgada com a boa música e com todo o contexto, Beatriz bebeu demais naquela noite. O jejum imposto pela quimioterapia acabara há pouco.

Havia ficado muito próxima da morte. Não podia mais perder tempo. Acabou confidenciando isso a Felipe no fim da noite. Aquilo o pegou de jeito. O abalo que sentiu logo foi sendo substituído por um apreço diferente por Beatriz. Era muito profissional e evitava ao máximo se envolver com clientes, mas o magnetismo entre eles estava constituído.

Os amigos dela foram embora. Quando era a última cliente, se plantou na mesa mais próxima da saída, aguardar seu garçom impecável. Pedido recebido. Só ele sabia o preparo.

Trinta anos separavam suas datas de nascimento, mas isso não era problema. A vida boêmia precoce o aproximou de pessoas mais velhas de forma muito fluída. Foram para o apartamento dele. Aquele que parecia não abrigar a identidade de Felipe da mesma forma que o bar fazia.

Acontece que Beatriz tinha uma energia pulsante. Vibrante. Trazia consigo toda a alegria da noite recém vivida. A forma como se somaram quebrou a divisão de espaços que ele havia criado em sua mente e seu coração. A áurea do bar invadiu cada cômodo, e sentiu, pela primeira vez, que tinha um lar também em casa.

#Desafio 2 — abril 2022 — escrever um texto a partir da palavra Lar

Atividade desenvolvida para o Clube da Escrita Afetuosa, de Ana Holanda.

--

--