A casca e a fuga
O nome Maíra é bom. A letra M fica mais ou menos no meio do alfabeto, o que significava que entre o começo e o fim da chamada oral, eu estava em um lugar confortável. Aquele em que eu tinha tempo para pensar um pouco e não falar uma besteira; ao mesmo tempo em que evitava o prolongamento do sofrimento que era a espera em ser chamada.
Só de escrever as primeiras linhas para esse texto, posso sentir novamente o frio na barriga que me possuía quando a professora chamava por Ana, a primeira da lista. Pronto, começava o tormento. Vai chegar a minha vez e ela é tão certa quanto a morte, a não ser que a professora por descuido tenha iniciado a chamada oral sem tempo hábil para terminar. Nesse caso, eu ficava à espera de um milagre chamado “deu o sinal”.
Naquele instante que o apito tocava, enquanto todos apressadamente colocavam seus pertences dentro das mochilas e corriam para a saída, o oxigênio parecia voltar a circular ao alcance das minhas narinas, meu sistema digestivo voltava ao seu funcionamento normal, e meu campo de visão aumentava porque eu não precisava mais me esforçar em me concentrar nas palavras que iriam sair da boca, podia voltar a dar atenção ao mundo em minha volta.
O ruim do Maíra é quando a professora chamava os alunos de maneira aleatória. M é a letra do meio, e por uma questão de lógica ou sentimento, aleatória para professora significava começar do meio, nem B, nem T. Não sei por que inventaram o ditado nem tanto ao céu, nem tanto ao mar. Só para atrapalhar a vida dos que iniciam seus nomes em M.
Nessas ocasiões quando o M virava A, eu era pega de surpresa. Maíra, você pode ler o texto da página 13? Poder, eu posso, mas não sei se quero. Era o que tinha vontade de responder e o que obviamente nunca saiu da minha boca. O que saía da minha boca eram palavras inaudíveis, gagas e sem pontuação.
Não me lembro de ter vivido um episódio real de bullying. O bullying que eu sofria era aquele feito por mim mesma. A leitura terminava e com o rosto corado e quente eu me martirizava desde o ponto final até a hora de dormir, em que eu me deixava abraçar pelo meu travesseiro, e os sonhos tomavam conta de mim. Uma coisa é certa, o sono sempre me curou.
O tempo passou e meu rosto não podia mais corar em momentos de exposição como aqueles, e como todo ser humano, fui me vestindo de casca e de fuga. A casca da autoconfiança para mostrar aquilo que não era, e a fuga que me protegia em um lugar onde eu não precisasse expor minhas fragilidades.
Como numa brincadeira de balanço, por muito tempo da minha vida, eu oscilei entre a casca e a fuga.
O processo de aprendizagem prevê erros e acertos, não sei se por questões familiares ou escolares, o medo de errar e não ser boa o suficiente me perseguiu (e ainda persegue) e me privou de aprender mais, ler mais, ouvir mais, ser mais. Até hoje quando participo de uma reunião em que vou ter que me apresentar, a chegada da letra M me provoca um frisson.
Não coro mais porque a casca tratou disso por mim, e devo confessar que ela me é útil em muitas situações. O que não me deixa avançar é a fuga. Ela me afasta da entrega, do aprofundamento, da intensidade. Quando me olho nesse lugar, em que chegou o momento da queda, de ir a fundo, eu geralmente recuo.
Está na hora de prestar contas com a casca e com a fuga.
Escrever é rasgar delicadamente a casca exibindo a pele rosada, frágil, pronta para ser deflorada.
Escrever é fincar pé, mesmo que os pés queiram correr de medo.
Desafio 1 — Fevereiro de 2022