Dia de competição

Michelli Pessoa Marinho
Clube da Escrita Afetuosa
3 min readMay 30, 2022

Quase não dormi de tanta aflição. Queria que o sol esquentasse o mais rápido possível e o relógio badalasse oito horas. Era o dia de competição da ginástica. Esperei por esse momento a semana inteira.

Devia ter entre oito e nove anos. Segundo ou terceiro ano do fundamental. Primeira vez em que estava em um esporte e gostava dele. Aprendi a minha série. Treinei todos os dias. Dei tudo de mim e fui radiante. Suando frio. Dando dor no estômago. Borboletas na barriga. E o sorriso continuava ali.

Apesar do nervosismo, estava feliz. Primeira vez em que estaria em uma competição oficial fora da escola. Seria vista. Avaliada. Analisada pela minha imagem. Roupa adequada. Brilhos nos olhos. Coque perfeito. Maquiagem padrão. Ah, o sorriso. Você não pode entrar no local sem. Precisa ser amplo e bem aberto. Transparecer verdade. Coragem. Satisfação. Fui selecionada entre muitas para estar ali.

Só não sei se a minha verdade também seria mostrada. Eu fervia por dentro. Uma ebulição silenciosa. Jorrando abismos internos em um corpo franzino. Pressão. Perfeição. Acertos. Menos erros. “A vitória não admite deslizes”, dizia o treinador. Emitia essa frase ao nos comparar com a aluna mais dedicada e esforçada da turma. Menor que eu. Maior em resultados. Dimensões de sucesso no ambiente escolar.

Meu pai percebeu o nervosismo. Ele sabia que eu queria estar (ali) e o quanto havia treinado. Pediu para que me acalmasse que tudo daria certo. Buscou água, me distraiu e esperamos iniciar. Lembro do ginásio cheio. Barulho das pessoas. Música alta. Torcidas. Fechei os olhos por um instante e puxei o ar. O tempo parou naquele segundo. Era como se congelasse a dor. A ansiedade. A perfeição. Todos em silêncio. A ausência do som. Exatamente o que precisava.

Minha categoria havia começado e chamaram em seguida. Fui dando passos pequenos. Engolindo a saliva com sabor de medo. Dois, três gotos. O gosto não mudava. Precisava desfocar. As pessoas estavam esperando. Olhando. Cogitando o dez. Desviei o olhar. Entrei na posição. Saudei os juízes. A plateia. Comecei a série. Errei um movimento. Esqueci de outro. Tentei finalizar o mais rápido possível. E o sorriso na mesma posição. Por fora, felicidade. Por dentro, ansiedade. Fiz os cumprimentos e saí o mais breve.

O técnico olhou pelo canto. Fez cara de reprovação. E eu de quem não havia entendido. O meu alívio foi maior. Em pouco tempo, nos chamaram novamente. A premiação havia chegado. Falaram meu nome. Segundo lugar. Olhei mais uma vez pra conferir se era eu. Perguntei à colega ao lado se era certeza. Ela confirmou. Subi ao pódio. Quase não acreditei. Aquela medalha foi minha primeira grande conquista da vida. E valeu por um ouro. Mesmo diante dos extremos, persisti.

Aos 8, aprendi uma grande lição. Amava a ginastica, mas não passei tanto tempo nela. Tive escoliose e fui para natação. Detestava. Entretanto, percebi que a saúde mental valia mais. Nunca contei sobre esse episódio pra ninguém. Perder foi minha sorte. Às vezes, você vence sem saber. Sair do ambiente tóxico era mais importante.

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Michelli Pessoa Marinho
Clube da Escrita Afetuosa

Jornalista e Radialista. Escritora no @afetodeversos e @vozesdaescrita