Dizem que lugares assim são chamados de Lar.

Patricia Moura
Clube da Escrita Afetuosa
3 min readApr 26, 2022

Era uma segunda-feira de outono. Seis horas da manhã. Esse som de fundo que se ouve é do despertador. Aquele irritante do celular. Inacreditável como grita todos os dias com fidelidade. No mesmo horário, chova ou faça Sol. Ou frio, como hoje! Levantei da cama após o bom dia dele e fui rumo ao quarto das filhas.

Primeiro bom dia de mãe. É preciso ser firme e delicada com ela. Afinal, a tarefa de acordar alguém é deveras desagradável. Função que autorizamos a poucos para essa confiança. Eu a conquistei. Sou o despertador da casa. Muitas vezes, levantando da cama antes mesmo de acordar. Mais parecendo um zumbi.

Maria desperta. Pisa com pés de anjo até o banheiro. Sua irmã não precisa acordar por antecipação! Mantém a porta fechada.

Ele, fazendo o café, é de praxe. Todo o aparato da cafeteira e tudo mais. Em seguida entro em cena para preparar a minha alquimia. Aquela que ninguém faz igual. O café-com-leite-da-mãe. Não tem nem parecido. Tentativas de imitação o fazem quente demais, ou doce demais, ou com leite demais… Não há aquele que já tenha conseguido esse feito imitativo. Isso porque entra na receita o ingrediente secreto. E, a propósito de ser secreto, não será revelado nesta oportunidade.

Tudo feito e ele se despenca a levar a Maria ao ponto certo, para pegar o ônibus certo e trabalhar no lugar que, espero, possa ser o certo. Ao menos pelo tempo certo.

Daí mais um pouco, começa o segundo bom dia de mãe. Esse já não precisa ser tão cedo ou tão apressado. Ela é a Maria que desperta sozinha. Essas experiências remotas de trabalho têm algumas vantagens para esse caso. Mas nem pensar de faltar o café-com-leite-da-mãe.

Após esses devidos encaminhamentos, chega a vez do café-com-ele. Sempre acompanhado das reclamações de ser mais rápido do que poderia, como se eu partisse para bem longe depois de tudo. Quando, na verdade, o depois de tudo fica no final da casa, um modesto cômodo com banheiro após a área de serviços. Meu consultório virtual.

Eu também me embriaguei nessa de trabalho remoto, mas o meu, ao contrário do da Maria, precisa ser de portas fechadas. Ali faço o tempo daqueles que me procuram para conversações sobre como a ansiedade ou a depressão tem conseguido atrapalhar suas vidas e seus relacionamentos.

Tem sido assim. Cada um assumindo seus compromissos. Ele também os tem, mas em outro ritmo. E tudo certo. O mais divertido é que sempre voltamos de onde estávamos para ficarmos juntos novamente nesse lugar. Renovamos nossos votos de querer fazer tudo de novo no dia seguinte. Tudo se repetirá amanhã, e depois, e depois. Tudo continua sendo. Essa rotina de repetição, ao contrário da monotonia ou do que pode ser enfadonho, conta sobre uma convivência harmoniosa, de relações que se repetem umas com as outras. Desejamos compartilhar nossas vidas, vivendo e revivendo, muitas vezes, muitos cafés-com-leite-da-mãe-e-com-ele. Tudo isso por, no mínimo, mais 20 para além dos 20 anos que já estão contados nas histórias de cada um de nós.

Dizem que lugares assim são chamados de lar.

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Patricia Moura
Clube da Escrita Afetuosa

Psicóloga e Bordadeira. Eu gostaria que a minha presença pudesse fazer a diferença na sua vida e, de alguma forma, isso faz toda a diferença para mim.