DO LATIM RECORDIS

Carmenpalheta
Clube da Escrita Afetuosa
3 min readMay 19, 2022

#02MAIO22

Nos almoços de domingo na casa de meus pais, éramos os mesmos da semana inteira. Com a diferença de que tínhamos mais tempo pra rir ou falar trivialidades; repetir histórias familiares. Ou não. Havia dias em que alguém levantava aborrecido da mesa. Não comia tudo. Ou engolia em seco algum comentário indigesto. Pequenas provocações entre irmãos.

Nem sempre meu pai estava de bom humor. Sentava-se calado e calado permanecia. Há meses não digeria bem as limitações que lhe eram impostas pelo diabetes, somadas às da cardiopatia e da hipertensão. Confesso que seu semblante com cenhos cerrados e afundados sobre a pele enrugada, me tirava um tantinho da fome. Porém, estar ali; ter a oportunidade de nos vermos junto à mesa, já era motivo suficiente pra matar o fastio que, vez por outra, abria um vazio no estômago.

Invariavelmente, minha mãe era quem servia nosso pai. Arrumava o prato; escolhia os legumes. E reclamava quando ele comia o que não devia. Era a forma de demonstrar amor e preocupação, suponho. Quando ele se foi, ela veio a entender o porquê dos “exageros”; e até mesmo dos dias em que o paladar dele não aceitava mais a comida feita por ela.

Após o almoço, era a vez da sobremesa. Nos dias de fisionomia e astral mais leves, era servida por ele. Não vinha em forma de doces. Era uma espécie de degustação latina, a língua que ele ensinara por longos anos. Toda a sabedoria etimológica parecia ter estacionado nele. Não foi diferente naquele dia.

Meu irmão mais novo contava sobre uma audiência que teve. Papai escutava com aqueles olhos castanhos e pequenos, encantados diante do filho advogado. E com a já conhecida balançada de cabeça que imitava um gesto de concordância e admiração. Ao final da audição, nos provocou: Vocês sabem o significado da palavra testemunha? — Lá vem aula de latim de novo! Ríamos todos. — Ora, já vi que não sabem.

Irmãos e eu colocamos a cabeça pra pensar. Queríamos desvendar a quase charada que papai nos lançara. Olhávamos uns para os outros. Nada! E com um sorriso maroto que mal conseguia esconder por trás do bigode e da alinhada barba branca, disse, astuto:

-Ora, vem da mesma origem da palavra testículo.

-Só podes estar brincando. Eu não acredito! Falei, sem hesitar.

E ratificou, categórico, a lição de latim daquele domingo: Testemunha, assim como testículo, é aquela que presencia o ato, mas dele não participa. A risada foi geral. Ele se dirigiu ao quarto pra buscar um dos dicionários latinos que possuía — eram mais de trinta — só pra comprovar a afirmação. Voltou à sala e indicou a página devidamente marcada. Como eu, meu pai também grifava o que mais considerava interessante no que lia. Lá estava ela: “ Testemunha, do latim testis; o que “atesta algo”… Ora, disse meu pai, não são, pois, os testículos, espécies de testemunhas do ato sexual?

Eram almoços ao redor de uma mesa de vidro quadrada. Mas me sentia como se estivesse em cadeira de madeira nos tempos de escola; aguardando a hora do lanche chegar. Hoje, só me resta recorrer ao verbo recordar. Do latim recordis, como ele, sem dúvida, me lembraria. E que significa, em bom português, “voltar a passar pelo coração”.

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Carmenpalheta
Clube da Escrita Afetuosa

Jornalista por formação e escritora em formação. Ambas por pura paixão pela palavra.