Ele era pura reticência

Mironga da Cachimba
Clube da Escrita Afetuosa
2 min readMay 24, 2022

Ele era pura reticência
Nada de vírgulas ou pontos finais
Sempre deixava uma ponta solta ou um fio desencapado
Na esperança de uma amarra
Um choque que pudesse manter
O quer que fosse vivo
Mesmo que lhe doesse a alma
O coração ou a carne

Não queria saber de pausas ou fins
Só de imaginar o coração palpitava
Suava frio
Era impossível dizer adeus
Mesmo que doesse
Machucasse
Ferisse
Fazia tudo que podia para manter qualquer fio de esperança
A minúscula que fosse chama acesa

Só que a vírgula começou a ser necessária
Precisava respirar, pausar, tomar fôlego
Mesmo contra sua vontade
Não era nem ponto final
A vida começou a exclamar na sua cara
Basta!
O ponto final ali, marcado bem depois da barra
Sem dó nem piedade
Cabia a ele aprender, por si só, a usá-lo
E a vida seguia exclamando
Não cruze mais esse limite!

Foi relutante, nem seu nome queria pronunciar
Ponto quem? Era no começo? No meio?
Não! É no final! Exclamava a vida de novo, e de novo e de novo
Ponto final! Linha final! Acabou!

Sofreu, chorou, implorou, rezou
Insistiu, persistiu, forçou a barra
A vida, generosa que só ela
Se compadeceu e abrandou
Removeu a estaca do seu peito
E só deixou ele, um sutil ponto final

Acostumou-se… Afinal, não precisava
Ser tão reticente
Para quê três pontos finais?
Só adiava o inadiável
Diminuiu para dois
Ainda queria dar uma chance
Chegou no um
Aprendeu a beleza do fim

Depois do ponto final
Reparou na nova página que se abriu
As infinitas possibilidades
Nossa! Exclamou, pela primeira vez
Tem aqui, e aqui, e acolá para ir!
Virgulou para respirar, exclamou de excitação!
Fechou os olhos, inspirou fundo
E disse a vida:

Estou pronto para ir.
Sem medo do que virá.
Com pontos finais quando preciso
Vírgulas para respirar
Exclamar mais, interrogar quando necessário
Se não mais me cabe, nada de reticências
É colocar dois dedos da margem
Próxima página, primeira linha
Novo parágrafo
Um novo começo.

--

--

Mironga da Cachimba
Clube da Escrita Afetuosa

Escrevendo e compartilhando minhas vivências na jornada mítico-ancestral, como filho de àṣẹ. Por Gustavo Oliveira.