Essa receita contém amor

Christiana Koch
Clube da Escrita Afetuosa
4 min readApr 1, 2021

Existe tanta coisa que pode ser lida nessa receita, por trás desses remédios há amor, cuidado, medo, burocracia, tanta coisa a ser destrinchada.

Após sete meses de transplante de medula óssea, as intercorrências continuam, o que mostra que o câncer não acaba quando termina. A gente tem que lidar com ele e com o medo decorrente dele por muito tempo, se é que ele vai embora algum dia.

Meu maior medo sempre é ficar internada. Em um ano me internei sete vezes e cinco delas duraram mais de trinta dias, isso significa mais tempo no hospital do que em casa. Isso por si só já é um sacrifício, mas o fato de ser mãe deixa esse sacrifício ainda mais penoso. Para mim é muito duro ficar longe dos meus meninos.

Essa receita demonstra todo o esforço do meu marido em me poupar de mais uma internação longa. A intercorrência da vez foi uma infecção no pulmão causada por um fungo. Nunca torci tanto para ter uma infecção no pulmão, isso porque a alternativa era muito mais sombria. Depois de achar nódulos no pulmão e fazer uma biópsia, fungo era motivo de comemoração.

O que a gente não sabia era que antifúngico é muito caro. O plano de saúde não estava disposto a disponibilizar a medicação para tomar em casa. Mesmo com o argumento de que internada o valor gasto pelo plano é muito maior, pois pagam a medicação e a internação. Mesmo com o argumento de que estamos no auge da pandemia, então é mais indicado que fiquemos em casa. Mesmo com todos as obviedades, não querem abrir precedentes para os segurados solicitarem toda e qualquer medicação, então o ideal, para eles, é se ater ao rol da ANS, que são os remédios obrigatórios. O curioso é que se eu precisasse de uma quimioterapia oral eu conseguiria facilmente. Eu não me conformava de ter que ficar um mês no hospital para tomar comprimido, não havia nenhuma indicação de internação. E eu achava que minha saúde mental corria sérios riscos.

Mas chega de entender a burocracia, o que importa aqui é que mais uma vez meu marido conseguiu enfrentar mais uma de tantas que apareceram ao longo desse ano de tratamento de leucemia. Quando eu soube que teria que me internar já me bateu aquela angústia e desespero, dizia que não ia, que não era justo, essas coisas que não ajudam nada, mas que é o que sentimos. Ele, diante do cenário, me assegurou que não ficaria as quatro semanas de tratamento do antifúngico, que ele em último caso iria judicializar. Via ele dar muitos telefonemas, acionar muitos contatos e eu me sentia a menina mimada que não pode ficar internada. Só que dessa vez eu aceitei ficar nesse papel, o cansaço desse tratamento é muito grande.

Me conformei que o primeiro passo para resolver esse problema era me internar e começar a tomar o remédio. Mais uma vez fui para o hospital, que já é a minha segunda casa. Dois dias depois o problema estava resolvido, eu teria alta no dia seguinte com o remédio para tratar em casa. Só que nosso caminho não é bem assim, linear. Depois de uma notícia boa, normalmente vem uma bomba para desestabilizar. Pouco depois a minha médica vem me dar a notícia que o citomegalovírus, um vírus que teima em não me deixar em paz, foi reativado novamente. A medicação, que tive que tomar há uns meses atrás, passa pela mesma questão burocrática. Quando ouvi isso já logo pensei que não dava pra fugir dessa internação longa, que eu desistiria, iria me conformar. Mas meu marido não se conformou e dois dias depois eu tive alta com todos os remédios na bolsa. Os dois que estão escritos a mão, com a minha letra.

Essas intercorrências têm acontecido porque minha imunidade é baixa e grande parte disso ocorre por conta do imunossupressor que tenho que tomar. O desmame desse remédio só pode começar quando eu parar de tomar o corticoide. O desmame do corticoide está demorando por causa da doença do enxerto contra o hospedeiro. São as duas primeiras medicações da receita.

Esses remédios estão todos entrelaçados entre si. Esta receita representa o que é a minha vida hoje: a tentativa de equilibrar os pratos sem derrubar nenhum, o medo que qualquer intercorrência causa e principalmente o amor e dedicação do meu marido. Ele é incansável, admirável e continua me salvando sempre.

Desafio #4 março

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