Esse texto é sobre nós, Vó.

Andreza Lucena
Clube da Escrita Afetuosa
2 min readMay 25, 2022

Se me encontro diante do computador, de folha branca já aberta, à espera, lembro de minha avó Noêmia. Amamos juntas as letras, cada uma de nós à sua maneira. Eu, através dos livros, enveredando na literatura de mim e de outros. Ela, apegada à Bíblia e aos missais. Recordo com clareza de vê-la empunhando seus livros saindo para os eventos da Igreja. Caçadora de palavras, sempre estudava com afinco as sentenças dos quadrados. Sentimento com quatro letras, perguntava. Pode ser A M O R ou M E D O, eu dizia. Deve ser amor, ela completava.

Nos últimos anos, a missa era em casa, ela e o Padre. Macia na poltrona, a televisão às alturas, na tentativa de que chegasse até dentro dela o som de Deus. Quando não, terço na mão, dia e noite a recitar o Verbo. “Com Deus me deito, com Deus me levanto. Cobri-me, Senhora, com Vosso manto”. De tanto ler, a Palavra já lhe era íntima, tabuada decorada. Melhor assim, afinal, tantos quilômetros percorridos dentro daqueles livros cansaram-lhe a vista, já não enxergava o pequeno das letras, guardava a pouca luz para iluminar os filhos e netos. “Jesus Cristo no Altar. Santo Antônio no meu corpo para o cão não me atentar”.

Ao contrário de mim, Dona Noêmia escrevia pouco, tinha enorme dificuldade. Além das palavras cruzadas, trazia cadernos e canetas ao lado de sua cadeira, companheiros. Anotava sobre o dia palavras aleatórias e gostava de anotar o nome dos bisnetos, não podia esquecê-los. Minha tia Vitória escreveu-lhe o nome dos filhos, dos netos e dos bisnetos em grandes letras de forma, construindo um organograma harmônico. Vovó releu vezes sem conta aquele papel amarelo, a agarrar a lembrança e levar a palavra aos confins de onde fosse.

Devotada que foi ao Deus, Ele a preservou do sofrimento, do padecer longo, morreu mansa e tranquila. Quando se desfez da matéria do corpo terreno, passou a enxergar com outros olhos, afiados. Agora, na companhia de Maria, ela recita os nossos nomes até que a Santa também não nos possa esquecer. “Nem de noite, nem de dia, nem no pingo da mêi-dia, nem na hora da minha morte. Amém”.

#desafio 02mai2022

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Andreza Lucena
Clube da Escrita Afetuosa

Escrevo sobre as (des)importâncias e (in)utilidades da vida. Estou no @escrevoemmaiusculo. Aguardo você! =)