Estranhos em um trem: cinema mudo

Munike Ávila
Clube da Escrita Afetuosa
2 min readNov 22, 2021

Estação Vernon-Giverny. Trem com destino a Paris. Agosto de 2011.

Ocupava dois bancos. Um para ela e um para seu saco azul. Um saco daqueles de lixo, grande, com um nó na ponta. Através dele era possível enxergar um bocado de roupas coloridas.

Retalhos de sua existência.

Sentamos nos dois bancos vagos à sua frente. Eramos quatro estranhos em um trem. Eu e meu irmão. Ela e o saco azul.

Eu de frente para o saco. Ela de frente para meu irmão.

Seu véu na cabeça revelava sua crença. Sua pele enrugada revelava sua idade. Sua bagagem inusitada revelava sua classe.

Muçulmana. Velha. Pobre.

Era assim que existia através do olhar comum.

Resistia.

Fez pouco caso das minhas pernas e braços esbranquiçados à mostra, diferente dos seus, cobertos de pudor.

Se atentou foi mesmo à camiseta do meu irmão, preta com apenas uma imagem estampada na frente: o rosto de Charlie Chaplin.

Nos entreolhamos. Eu e ela.

Ensaiei um sorriso tímido, de quem não sabe ao certo o que dizer, mas sincero, de quem está disposta a escutar.

Ela riu. Gargalhou.

Colocando a mão em frente a boca e mexendo os ombros para cima e para baixo.

Silenciosamente.

Nos entreolhamos. Eu e meu irmão.

Com as testas franzidas, de quem nada entendera, e os olhares curiosos de quem desejava saber mais.

Com os dedos rugosos ela então apontou para a imagem gravada na camiseta. Voltou a gargalhar com os ombros.

Rimos, mudos, e passamos a concordar com a cabeça que aquele personagem era de fato engraçado.

Com o braço direito empurrou o ar para baixo. A palma da mão aberta, como se esmagasse algo em uma caixa pra fazer caber.

Pequena.

Seus dedos contornaram um retângulo no ar. Esticou as antenas da TV.

Nos pusemos a assistir.

Suas mãos, então, começaram a balançar como se segurasse dois palitos num movimento para fora e para dentro, para fora e para dentro, para fora e para dentro.

As pernas mais famosas do cinema mudo.

Gargalhou com todo o corpo. Com toda a vontade. Na mais discreta euforia.

Era ali que cabia

na sua infância

pequenina

em frente a TV

com o riso largo

sem medo de ser

sem pudor

sem problemas

sem palavras.

Ao descer do trem, se perdeu na multidão.

Na Paris dos filmes ninguém nota

Ela e o saco azul.

Mas ela nota

os detalhes escondidos

estampados no corpo

de estranhos com quem esbarra.

E no saco carrega seus restos de existência

ou seriam suas memórias mais preciosas?

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