Evocação

Mironga da Cachimba
Clube da Escrita Afetuosa
4 min readMay 21, 2022

O assunto surgiu em uma sessão de terapia. Contava sobre minha infância e seu nome, novamente, reaparece, com a mesma força e intensidade que sempre aparece. Até hoje, toda vez que pronuncio, é como retirar uma chave do bolso, destrancar uma porta antiga, daquelas de filme, que rangem e arrepia o espectador. É voltar à escola e reviver, mais uma vez, tudo aquilo.

A cena começa comigo no palco. Eu era roqueiro, tocando sucessos dos anos 60. Cabelo penteado com gel para trás, look preto, óculos escuro e uma guitarra. Nesse dia, o palco e a multidão não causavam medo ou ânsia. Eu andava pelo palco, com passos marcados para lá e pra cá, fazendo os acordes de acordo com a batida da música. Eu tinha 6 anos de idade e era formatura do pré-primário. Mesmo que de brincadeira, eu era uma estrela.

Junto comigo, tinham mais dois carinhas. Na foto acima, só aparece eu e mais um. Podia chamar de nossa banda, só que nem me lembro do terceiro elemento. Só de Jefferson. Meu primeiro melhor amigo. No recreio, ele ocupava o topo do trepa-trepa, como líder da nossa nave. Eu sempre sentava do lado direito. Curioso que não me lembro da sua voz, o que me leva a pensar que talvez ele fosse mais quieto mesmo. Tinha um tom de pele moreno claro, cabelo preto e topete. Era o tipo de garoto que transmitia serenidade e segurança.

Casa Branca era o nome da nossa escola. Seus tons de azul e branco transmitiam paz, tranquilidade e acolhimento. Como as cores influenciam nossas emoções, não? Éramos alunos da tia Fátima, que só guardo boas lembranças. Lembro de ter ficado de castigo apenas uma vez, sem recreio, nem sei o que tinha feito. Após a formatura, a maioria ia para os colégios tradicionais do bairro. Eu fui para o São Francisco Xavier, fundado por padres jesuítas. Meu pai estudou no mesmo colégio, quando ainda era um prédio no meio do nada e só para meninos.

Guardo na memória até hoje o caminho: paredes marrom e bege surgiam na subida da rua. Um prédio imponente que ocupa um quarteirão. Suas cores marrom e bege não transmitiam a mesma paz e serenidade do Casa Branca. O brasão da escola, do lado esquerdo do uniforme, como se tivesse que carregar tudo aquilo no coração. Era dividido em 4 partes, com emblemas que nunca me interessaram pesquisar a fundo. Totalmente contrastante com o símbolo do Casa Branca: uma casa azul, no meio da camiseta. Brasão e símbolo. Peso e leveza.

Ao dobrar a esquina, as paredes continuavam até as duas entradas de grade principais. Era um lugar enorme e amedrontador. Chorei ao entrar e deixar a casa branca e azul para aquele mundo marrom e bege. Caminhei chorando pela entrada, tentando assimilar a mudança brusca da escolinha para o colégio.

De repente, meu olhar cruza com o dele. Jefferson. Ele só deu um sorriso maroto, de canto e na hora eu parei de chorar. Que alívio! Ele estaria ali, meu melhor amigo e parceiro de banda. Mesmo com alguns garotos pentelhos zoando a gente no recreio, Jefferson caminhava com sua postura serena e segura, ignorando as criaturas. Eu seguia, do lado direito. Eu sentia que, enquanto ele estivesse ali, nada de ruim poderia acontecer.

Ficamos juntos até o segundo ou terceiro ano do primário. Jefferson mudou-se de bairro e de escola. Sem uma nota, sem um bilhete, sem uma direção. E agora? Como seria minha vida sem Jefferson? Mesmo com outros amigos que vieram, nenhum deles era o Jefferson. Uma perda que impactou minha vida, em diversos aspectos. Quando o bullying ficou mais pesado, ele não estava lá. Eu não entendia o que tinha feito para aquelas pessoas atormentarem meus dias. “Onde você está?” “Para onde você foi?”. Me fechei cada dia mais. Fingi estar doente só para não ir, pelo menos um dia. Minhas notas eram péssimas e ninguém entendia a razão. Eu entendia: “aqui não é um lugar seguro”. “Aqui não é o Casa Branca!”. “Aqui não é a sala da tia Fátima! ``.O Jefferson foi embora!”. “Esse lugar não é seguro para mim!”. “Alguém me entende?”. Ninguém entenderia. Nem eu conseguia falar.

Não sabia o que dizer ou como explicar.

E o roqueiro do Casa Branca não existia mais. Aposentou a guitarra, o gel no cabelo, o óculos escuro e o look preto. Trocou por marrom e bege, o brasão pesado no lado esquerdo do peito, seus emblemas históricos sem sentido algum. Aprendeu a ter medo. Do palco, das pessoas, da exposição, das professoras, da vida. Quanto mais despercebido pudesse passar, melhor. O pesadelo acabou cinco anos depois. Mudou de bairro, foi para uma escola laica, sem uniformes. Aos poucos, abriu o coração para novos amigos. Voltou a sorrir um pouco. Mesmo assim, sua melhor companhia ainda era o medo. Medo do abandono. E Jefferson? O que será que aconteceu com ele? Como a vida o encaminhou? Estava vivo? Morto? Também teve medo? Será que ele lembrava de mim, com a mesma potência? Quem sabe…

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Mironga da Cachimba
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Escrevendo e compartilhando minhas vivências na jornada mítico-ancestral, como filho de àṣẹ. Por Gustavo Oliveira.