“Eu não sou Anestesista”

Mironga da Cachimba
Clube da Escrita Afetuosa
3 min readMay 11, 2022

Era uma quarta-feira quando agendei um horário com a doutora Gabriela. Acompanhamos um caso clínico juntos e a ideia era conversar sobre os próximos passos do tratamento. Ela me conta quanta gente tem agendado horários para pedir prescrição de remédios. E só. Querem aliviar a dor, os sintomas de ansiedade, pânico, depressão ou qualquer outro transtorno.

Gabriela não é o tipo de médica que mal olha na cara, pergunta “o que está sentindo?”, diz secamente “toma isso e volta daqui a quinze dias”. Contei a ela o que penso: “nem tudo é apenas do mundo interno”. Direta ou indiretamente, o mundo ao redor nos afeta. O psiquiatra suíço Carl Jung chamou “inconsciente coletivo”. Querendo ou não, todos estamos dentro do caldeirão, ora fervescente ora morno, ora quente como um vulcão ora refrescante e relaxante. Pós-pandemia, guerra, violência, latrocínio seguido de morte. Ouço direto a frase “o Brasil não é para amadores”.

O mundo não está para amadores. Só que nem todo mundo afetou-se pela pandemia. Gabriela, mais uma vez, diz: “sabe quem não sentiu nada? Meus pacientes psicóticos ou esquizoides” — pessoas que tem quase ou zero vínculo afetivo-social, disssociados da realidade, de emoções e sentimentos. Logo capto a mensagem: os neuróticos é que se deram “mal” — esse que vos escreve, inclusive. Tenho até carteirinha de neurótico! Tudo me afeta. Se minha gerente pede 5 minutos para conversar, já penso: “pronto, fui demitido”. Se meus amigos não se fazem presentes, o problema sou eu — carente demais, não sabe ficar sozinho, demanda muito. Então, imagino que os ansiosos, “panicados” e deprimidos sentiram e muito o baque do isolamento, da incerteza, da mudança das e nas relações que tinham com as pessoas e com o mundo.

E desses grupos de pessoas com os mais diversos transtornos, que possuem particulares e nuances para cada pessoa, algumas querem mergulhar em suas emoções, revisitar o passado, ressignificar as vivências e construir uma nova relação, com elas mesmas e com o mundo. Outras só querem aliviar a dor, o sintoma e seguir com a vida, na base das milagrosas gotas de Rivotril ou um comprimido qualquer de antidepressivo, ansiolítico e afins. Tem gente que é combo: remédio mais terapia, tem gente que quer um ou outro.

Gabriela não me parece aceitar o discurso: “doutora, por favor, quero um antidepressivo só, porque tá difícil”. É a hora que vem a frase, direta e reta: “eu não sou anestesista. Se fosse, teria estudado Anestesiologia”. Ela acredita no combo, como eu. Só aliviar sintomas, sem compreender, sem, como gosto da analogia, entrar na floresta escura da alma, ou ainda, nas palavras de São João da Cruz, passar pela “noite escura da alma”, não tem luz ou saída.

Quem está certo e quem está errado? Existe certo ou errado na busca da cura? Só aliviar o sintoma, sem compreender a experiência como um todo, é o caminho? A terapia não é sobre respostas — nem eu as tenho! É ser advogado do diabo, fazer perguntas, apontar caminhos, provocar, cutucar a onça, sem vara mesmo. É encontrar as linhas que costuram as dinâmicas inconscientes, as sabotagens, as vozes externas e dizer: “você percebe que…”. Infelizmente, a verdade oculta será revelada, com muita amorosidade, para o bem do paciente. Só que a sangue frio, sem anestesia.

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Mironga da Cachimba
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Escrevendo e compartilhando minhas vivências na jornada mítico-ancestral, como filho de àṣẹ. Por Gustavo Oliveira.