Eu sou meu próprio lar

Carlaprates
Clube da Escrita Afetuosa
3 min readApr 26, 2022

- Puta que pariu! Você não se valoriza. Seu pai só prioriza seus irmãos. Que conversa é essa? Ah, seus ex(s) foram muito melhores! Você não sabe dar valor ao que tem. Sou muito melhor que eles! Não, não posso ir na reunião da escola. Não, não posso! Que saco. Você me exige demais.

Durante muitos anos, a bem dizer quase 20 anos, meu lar foi um inferno. Mas não foi sempre assim.

Acabei me esquecendo do lar família, do lar aconchego, do lar em que chegava tarde, após a faculdade ou o trabalho, e tinha alguém com olhar preocupado e interessado:

- O dia foi difícil e cheio hoje. Agora é hora de descansar os neurônios!

Do lar que tinha cheiro de feijão temperado na hora do almoço. Café coado na hora de manhã. Pãozinho na chapa com manteiga no café da tarde.

Sim, tinha café da tarde. Em um certo momento do dia, com bolo saído do forno, pão francês e manteiga. Aroma de chá pela casa e também fubá, cenoura, chocolate… Que tinha olho no olho, conversas jogadas fora. Tinha leveza!

Era cômodo encontrar a casa bem arrumada, a comida pronta, a cama feita. Talvez por isso na vida adulta encontrei tanta dificuldade. Meus pais não sabiam ensinar e conduzir para a autonomia. Eram experts na superproteção e no excesso de cuidados.

Será que por isso procurei tantos relacionamentos torpes? Para conseguir retribuir tanto amor em meio ao caos e ao desamor? Ou será que escolhi não ter ajuda e nem cuidado para, sozinha, me fazer valer?

Não sei a resposta.

Com o tempo, viver no inferno foi me conduzindo a um desencontro de mim mesma. Com o tempo, não sabia mais quem eu era. Com o tempo, não tinha mais lar.

Nem sempre.

Mesmo no inferno, acordar no meio da noite com o choro da Livia. Ser contemplada com a pele delicada e fresca. Com as mãozinhas se movendo, o sorriso e o suspiro aliviado quando a pegava no colo.

As vezes que ficávamos na cama até mais tarde. Isso era paraíso, mesmo no inferno. Ela sentia cócegas perto do pescoço. E eu, por volta da barriga. Daí a gente se provocava. Caíamos em um abraço por sobre a cama. Ela disparava a rir, um riso longo e serelepe. E partia para o ataque. Eu também não me aguentava. Era nossa brincadeira preferida.

Também tinham os dias em que ficávamos juntos. Quando ele finalmente encontrava momentos de paz no tumulto interno que vivia. Eram raros, ou talvez mais raros, mas aconteciam. Nós três juntos no sofá vendo um filme, almoçando ou jantando na mesa da sala de jantar, viajando nas férias e feriados. Tinha abraço de três também. Raro, mas tinha.

Até que um dia ele enlouqueceu de vez. Ruiu por completo o nosso lar.

Ao mesmo tempo que vieram as ruínas não havia muito tempo para recomeçar. Tínhamos a Livia e ela precisava mais do que nós dois de cura!

Daí voltamos para o meu primeiro lar, aquele do bolo de cenoura e fubá, do feijão, do café da tarde. Desta vez, não tinha mais minha mãe. Só meu pai. Com olhar atento, generoso e uma ternura desinteressada:

- Dia cheio hoje, minha filha. Como você trabalha. Como corre. Agora é hora de descansar os neurônios!

Nesta ida e vinda, só posso dizer que descobri uma coisa: que eu sou meu próprio lar!

#02abr22

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