Flores de papel crepom
O atendimento na clínica odontológica da Barragem Santa Lúcia, em Belo Horizonte, começava pontualmente às nove da manhã. Sempre às quartas-feiras, como parte de um estágio obrigatório da faculdade de Odontologia. A jovem, de 21 anos, queria ser dentista. A roupa branca, limpa e bem passada, os cabelos presos em um rabo de cavalo. Vinha da zona sul. Com frequência, o namorado a levava até lá de carro. Na maleta, tudo arrumado. Impecável. Anotações do futuro atendimento enfileiradas em fichas pautadas. A letra redonda e bonita. O canal do dente desenhado. A sequência do tratamento exaustivamente ensaiada na mente. Os olhos míopes atentos aos detalhes. Todos.
Naquele dia, a mocinha se surpreendeu com as lágrimas da paciente antes da consulta. Estaria com medo? Mas ela era cuidadosa, não era? Tão boa aluna… Não lhe faria mal, não é? Pegou uma das mãos da senhora e deu batidinhas em seu braço direito, tentando acalmá-la. Sem saber direito como agir naquela situação, conferiu os registros do prontuário: casada, moradora do aglomerado há um certo tempo. Tinha três filhos. Precisava de quatro tratamentos de canal. Fazia bicos. Cheirava a sabonete. A roupa desbotada, os chinelos velhos nos pés rachados. A boca maltratada, alguns dentes faltando aqui e ali. Principalmente os de trás, algo tão comum no Brasil.
A estudante planejava corrigir, pelo menos, uma parte do estrago nos vestígios de um sorriso que os lábios tratavam de esconder. Quantos anos aquela dona tinha mesmo? Uns 10 ou 15 a mais do que ela, mas pareciam muitos mais. A franja no cabelo da aluna denunciava a infância recém abandonada. Os olhos baixos da mulher escondiam histórias de maus tratos que ela contou em voz baixa. E a menina, pela primeira vez, contemplou atentamente a paisagem que avistava das janelas da clínica azulejada de branco e que cheirava a cravo. De lá, daquele ambiente protegido, asséptico, espreitou o morro, as casas empilhadas e quase da mesma cor. A desordem que não cabia nos esquemas, nas fichas, no controle que ela julgava ter. Naquele momento, ela sentiu o coração de um mundo triste e os seus sonhos se encolheram. Teve vergonha deles. Tão pequenos e fúteis diante da imensidão que entrava pelos vidros quadrados.
Os cuidados de saúde transcorreram conforme o script. Ou quase. Após 90 minutos de trabalho em uma boca corajosa e persistentemente aberta, a futura dentista passou a mão enluvada pelo rosto da mulher. Por hoje chega. Tudo vai ficar bem. Semana que vem estarei aqui, só para cuidar de você. No dia marcado, Maria de Lourdes compareceu. Trazia um presente nas mãos tímidas. Dentro da caixa um pouco amassada, repousava o papel crepom moldado em flores rosas e vermelhas que ela mesma fazia nas horas vagas. Quais? A aprendiz recebeu o mimo e sorriu com os olhos molhados. Gotinhas respingaram nas lentes dos seus óculos e, ao contrário do esperado, desembaçaram a visão. Naquele dia, ela descobriu um sentido, talvez o mais importante, para os primeiros passos que dava dentro de si mesma e por aquelas ruas empoeiradas.
Cláudia Figueiredo, 10/11/2021
Desafio #1 — Novembro de 2021
Clube da Escrita Afetuosa Ana Holanda