Histórias de Estimação

Julia B
Clube da Escrita Afetuosa
9 min readFeb 25, 2022

Senta que lá vem história. O desafio é listar meus livros favoritos e seus porquês. Tentarei ser breve mas já aviso que não será possível.

  • O Senhor dos Anéis / O Hobbit — J R R Tolkien

Meus pais foram meio hippies e um tanto nerds na juventude que compartilharam. Cresci ouvindo sobre universos fantásticos e o de Tolkien foi de longe o que mais me marcou. Lembro de ter oito anos quando o filme lançou e de suar frio quando o lanterninha questionou minha idade — a censura eram doze. O livro, que era um calhamaço com as três partes, eu levava na mochila durante o ensino médio. Me abrigou de um tédio mortal e do desastre que foi a adolescência. Com O Hobbit, visitei minha infância durante a pandemia num fim de semana no sítio. Tomando café na varanda, que dá para um rio logo abaixo, numa cabana na colina. Quando leio, posso ouvir o tom da sua voz ainda viva, de quem inventa Condados e Valfendas para os filhos dormirem. Entre trincheiras. No meio da guerra. E penso muito em como as histórias nascem por absoluta necessidade.

  • Fronteiras do Universo — Phillip Pullman

Outra saga “para crianças” que fez mais sentido depois de adulta. Assisti à Bússola de Ouro com a idade da Lyra. Não gostei. Li os livros mais tarde com anos de distância. O último, meu preferido, li ano passado aos 26. Uma história “boba” mas cheia de sentidos que se entrelaçam delicadamente. Repleta de construções filosóficas robustas, que se suavizam pelas linhas fantásticas da narrativa. Que divertido deve ser inventar algo assim. Daqui tirei que deixar de ser criança é muitas vezes violar a própria alma — há que resistir.

  • Norwegian Wood — Haruki Murakami

Longe de ser meu favorito do Murakami, mas foi o primeiro e talvez por isso fincou raízes tão profundas. Li com a idade das personagens, com olhar despido de críticas sociais e de complexidades narrativas. É sobretudo sobre a solidão — a pior delas — numa Tóquio que é luzes, barulho e gente. Sobre se perder em meio às perdas, sobre o amor que não salva e também sobre a urgência por se encontrar. Como todos dele, de uma sensibilidade maestral.

Não consigo me expressar bem — afirmou Naoko. — E tem sido sempre assim nos últimos tempos. Tento dizer alguma coisa, mas só me ocorrem as palavras erradas. Palavras erradas ou opostas ao que quero dizer. E quando eu tento corrigir o que disse, cometo erros, as coisas ficam mais confusas, e acabo então sem saber mais o que pretendia dizer no início. Sinto como se meu corpo se repartisse em dois, com as duas metades brincando de pega-pega. Bem no meio existe um poste bem grosso, ao redor do qual elas não param de dar voltas se perseguindo. Nunca consigo alcançar a outra metade de mim que sempre tem a palavra certa.

  • Além do Ponto e Outros Contos — Caio Fernando Abreu

Foi livro obrigatório pro vestibular. Graças a deus e ao MEC, passava as aulas desenhando corações ao lado dos parágrafos que me subiam calafrios. Acabei nunca passando pra nenhum curso concorrido — descobri que não precisava, afinal. Mas encontrei novos caminhos até meu coração.

(…) mas é que a gente tem tanto medo de penetrar naquilo que não sabe se terá coragem de viver, no mais fundo, eu quero dizer, é isso mesmo, você está acompanhando meu raciocínio? Falava do mais fundo, desse que existe em você, em mim, em todos esses outros com suas malas, suas bolsas, suas maçãs, não, não sei porque todo mundo compra maçãs antes de viajar, nunca tinha pensado nisso, por favor, não me interrompa, realmente não sei, existem coisas que a gente ainda não pensou, que a gente talvez nunca pense, eu, por exemplo, nunca pensei que houvesse alguma coisa a dizer além de tudo o que já foi dito, ou melhor pensei sim, não, pensar propriamente dito não, mas eu sabia, é verdade que eu sabia, que havia uma outra coisa atrás e além das nossas mãos dadas, dos nossos corpos nus, eu dentro de você, e mesmo atrás dos silêncios, aqueles silêncios saciados, quando a gente descobria alguma coisa pequena para observar, um fio de luz coado pela janela, um latido de cão no meio da noite, você sabe que eu não falaria dessas coisas se não tivesse a certeza de que você sentia o mesmo que eu a respeito dos fios de luz, dos latidos de cães (…) ( Para uma Avenca Partindo)

  • Salt — Nayyirah Waheed

Respeito. Esse livro te quebra as pernas, te arranca o estômago. Docemente. Te pega no colo e convida a habitar outra pele, mas só por algumas linhas. Doce doce, docinho. Guardo ao lado da cama e visito sempre que preciso chorar e me lembrar do que importa. De um feminino feroz, que trava suas batalhas em silêncio. Com uma delicadeza implacável. Que míngua, se encolhe, mas sempre volta a ser cheio; na verdade, nunca deixou de ser. Nayyirah é um mistério. Dela só sei que é imigrante, de origens africanas. E dá aula, toda vez. Não ouso traduzir. Só respeito.

if i write what you may feel but cannot say. it does not make me a poet. it makes me a bridge. and i am humbled and i am grateful to assist your heart in speaking. — grateful― Nayyirah Waheed, salt.

she asked ‘you are in love, what does love look like’ to which i replied ‘like everything i’ve ever lost come back to me’.― Nayyirah Waheed, salt.

there is a tender thing i am made of. i have always felt before i breathe.― Nayyirah Waheed, salt.

listen to my poems
but do not look for me
look for you.― Nayyirah Waheed, salt.

when you are struggling in your writing (art). it usually means you are hearing one thing. but writing (creating) another. — honest | risk― Nayyirah Waheed, salt.

there is a god in writing.
a soft. roaring. unconditional. home of a god.
who prays to me.― Nayyirah Waheed, Nejma

my english is broken.
on purpose.
you
have to try harder to understand
me.
breaking this language
you so love
is my pleasure.
in your arrogance
you presume that i want your
skinny language.
that my mouth is building
a room for
it
in the back of my throat.
it is not.
— i have seven different words for love. you have only one. that makes a lot of sense― Nayyirah Waheed, salt.

why can we never talk about the blood. the blood of our ancestors. the blood of our history. the blood between our legs. — blood― Nayyirah Waheed, salt.

sometimes the night wakes in the middle of me. and i can do nothing but become the moon.― Nayyirah Waheed, salt.

can we speak in flowers. it will be easier for me to understand. — other language ― Nayyirah Waheed, salt.

  • Jóquei - Matilde Campilho

Li de pé na livraria, releio quando quero lembrar que a poesia não precisa de estribeiras. Pode correr solta na mesma marcha desalinhada, cambaleante, genuína que meus pensamentos mais profundos.

Só por esse aqui esse livro vale ouro:

Não sou de choro fácil a não ser quando descubro qualquer coisa muito interessante sobre ácido desoxirribonucleico. Ou quando acho uma carta que fale sobre a descoberta de um novo modelo para a estrutura do ácido desoxirribonucleico, uma carta que termine com “muito amor, papai”. Francis Crick achou o desenho do ADN e escreveu a seu filho só para dizer que “nossa estrutura é muito bonita”. Estrutura, foi o que ele falou. Antes de despedir-se ainda disse: ” Quando você chegar em casa vou-te mostrar o modelo”. Isso não esqueça os dois pacotes de leite, já agora passe a comprar pão, guarde o resto do dinheiro para seus caramelos, e quando você chegar eu te mostro o mecanismo copiador básico a partir do qual a vida vem da vida. Não sou de choro fácil mas um composto orgânico cujas moléculas contêm as instruções genéticas que coordenam o desenvolvimento e funcionamento de todos os seres vivos me comove. Cromossomas me animam, ribossomas me espantam. A divisão celular não me deixa dormir, e olha que eu moro bem no meio da montanha. De vez em quando vejo passar os aviões, mas isso nunca acontece de madrugada — a noite se guarda toda para o infinito silêncio. Algumas vezes, durante o apuramento das estrelas, penso nos santos que protegem os pilotos. Amelia Earhart disse que não casaria a não ser que fosse assinada uma tabela de condições e essas condições implicavam a possível fuga a qualquer momento.” I cannot gurantee to endure at all times the confinements of even an attractive cage”. Vai passarinho. Soube de uma canção cujo refrão dizia I would die for you, fiquei pensando que mais de metade das canções do mundo dizem isso mas eu nunca entendi isso. Negócio de amor e morte, credo. Lá na escola eles ensinavam que amor são sete vidas multiplicadas, então acho que amor é o contrário do fim. Sei lá, o mundo está mudando tanto. Não sou de choro fácil a não ser quando penso em determinados milagres que ainda não aconteceram. Meu time ganhou por três a dois. O maior banco norte-americano errou, e errou em muitos milhões. Ninguém chegou a falar do aniversário do Superman, e isso também conta como erro. Faltam seis dias para a Primavera, está tendo uma contagem comunitária na aldeia mais próxima daqui. Acho que está chegando a hora do sossego, e que muita alegria vai pintar por aí. Acho que uma palavra é muito mais bonita do que uma carabina, mas não sei se vem ao caso. Nenhuma palavra quer ferir outras palavras: nem desoxirribonucleico, nem montanha, nem canção. Todos esses conceitos têm os seus sinónimos simplificados, veja só, ácido desoxirribonucleico e ADN são exatamente a mesma coisa, e o resto das palavras você acha. É tudo uma questão de amor e prisma, por favor não abra os canhões. Quando Amelia Earhart morreu continuava casada com Putnam — suspeito que ela deve ter visto rostos incríveis nas estrelas. Que coisa mais linda esse ácido despenteado, caramba. Olhei com mais atenção o desenho da estrutura e descobri: a raça humana é toda brilho. (Notícias Escrevinhadas na Beira de Estrada)

  • Amora — Natália Borges Polesso

Frio na barriga. De morrer de amor. Uma vez disse isso a ela e repito aqui: Quando crescer quero escrever que nem a Natália.

  • O Profeta — Khalil Gibran

Alguns livros são a minha religião. Prefiro a padres e pastores e rabinos e mestres e médiuns de todos os tipos.

Então um eremita que visitava a cidade uma vez por ano, avançou e disse: Fala-nos do Prazer. E ele respondeu: O prazer é uma canção de liberdade, mas não é a liberdade. É o florescer dos seus desejos, mas não é o fruto. É uma profundeza chamando à altura, mas não é a profundeza nem a altura. É o engaiolado a ganhar asas, mas não é o espaço abrangido. Sim, na verdade, o prazer é uma canção de liberdade. E eu ficaria contente se a cantassem com todo o coração; mas não quero que percam o coração ao cantar. (…) Até o corpo conhece a herança e a necessidade a que tem direito e não será enganado. O corpo é a harpa da alma, cabe a vocês extraírem uma doce melodia ou sons confusos. E em seu coração, perguntam: “Como distinguiremos o que é bom no prazer do que não é?” Vão para seus campos e jardins e aprenderão que o prazer da abelha é colher o mel da flor, mas o prazer da flor também é dar seu mel à abelha. Pois para a abelha a flor é uma fonte de vida. E para a flor a abelha é mensageira do amor. E, para ambas, abelha e flor, propiciar e receber prazer é uma necessidade e um êxtase.

São tantos. Livros que amei quando pequena — A Menina que Roubava Livros (Markus Susak)— porque uma história pode ter o ponto de vista que eu quiser, e quem me contou foi a própria Morte. — E as Estrelas, Quantas São? (Giulia Carcasi) — me ensinou como partir meu coração graciosamente. E que uma história são sempre pelo menos duas. — O Guia do Mochileiro das Galáxias (Douglas Adams) — que a genialidade pode ser deliciosamente divertida. — Livros que me refugiaram — A Hora da Estrela (Clarice Lispector) — eu que nunca gostei dos clássicos, li da tela do celular, no intervalo entre aulas. Aprendi que somos intrinsecamente metafóricos e que falar de alguém distante é também falar de si. — Livros que não cansam de ensinar — Essa Loucura Roubada Que Não Desejo a Ninguém a Não Ser a Mim Mesmo Amém (Bukowski) — que a sutileza reside mesmo nas fachadas mais brutas. Tantos e tantos e tantos outros que agora não consigo lembrar…

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