José e o balé

Luciana Godoi
Clube da Escrita Afetuosa

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Da sua cama, embaixo da marquise da loja de ferramentas, José tinha uma vista privilegiada. Era dele o lugar mais cobiçado do teatro municipal, em noite de estreia.

Mas, nem sempre foi assim. José costumava dormir em uma cama comum, dentro de uma casa comum. Aquela, no entanto, não era uma noite comum: o barulho da chave não foi ouvido no portão, os passos não foram ouvidos na porta de entrada, o sorriso do pai do José não iluminou a sala.

— Vocês dois, fiquem aqui e durmam — disse a mãe — seu pai deve estar atrasado com aquela obra. Já que eu trago ele pra casa.

José não pregou o olho, mas fingiu dormir quando viu a mãe atravessar sozinha o corredor. Fosse o que fosse não seria tão ruim de manhã. Tudo fica mais fácil à luz do sol.

Só que o sol nem nasceu. José tinha treze anos quando perdeu o pai.

Os dias seguintes passaram como um borrão, apagando todas as certezas que ficaram, miúdas, na chave da casa alugada devolvida ao proprietário.

Coube tudo numa caixa só: um punhado de roupa pros meninos, os livros da escola, um pote de plástico com o que sobrou na geladeira. A mãe do José, que dela mesmo só levava o que vestia, agarrou travesseiro e coberta embaixo do braço e fez o caminho pra loja de ferramentas, como se não houvesse outro lugar aonde ir. E não havia. Nenhum lugar aonde ir.

O dono da loja de ferramentas, um velho amigo do pai do José, levou poucos segundos pra lamentar o ocorrido e oferecer tudo o que tinha: a marquise da sua loja, pra que lhes servisse de abrigo.

E foi assim que, pela primeira vez, a cama do José foi cuidadosamente arrumada embaixo da marquise da loja de ferramentas. Um lugar medíocre pra dormir, e, ao mesmo tempo, o mais cobiçado do teatro municipal, em noite de estreia.

José fechou os olhos esperando pelos piores pesadelos. O pai caindo do terceiro andar. A mãe chamando por ele da calçada, entrando devagar na falta de resposta. O corpo sem vida, a mãe sem voz, o fim de tudo. Mas dessa vez tinha música e José quis abrir os olhos.

Bem à sua frente, a janela da escola de balé era um palco, e José — agora sim ele sabia — ocupava o lugar mais cobiçado, na noite de estreia da vida inteira que ele tinha pela frente.

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