Lembranças com gosto de “lar”

Michelli Possmozer
Clube da Escrita Afetuosa
2 min readApr 26, 2022

Cheiro de biscoito de polvilho sendo fritado. A maciez da coberta de veludo vinho esquentando o meu corpo. A liberdade de brincar no quintal a qualquer hora já que na casa de vó as regras são diferentes. O abraço apertado. As mãos da vovó penteando meus cabelos enquanto me contava histórias. São dessas coisas que eu me lembro quando penso no que um lar significa pra mim.

Durante toda a minha infância, tive o privilégio de crescer muito perto de meus avós, maternos e paternos. Mas era na casa da minha avó Celina, mãe da minha mãe, onde eu me sentia em casa. Tínhamos uma ligação muito forte. Eu podia estar em qualquer lugar na companhia da vovó que me sentia em casa. Se dependesse da minha vontade, dormiria na casa dela todos os dias. A cama da vovó era mais gostosa, pois ela tinha uma colcha de veludo vinho que tinha o poder de, além de me aquecer, fazer com que eu me sentisse protegida, acolhida. A melhor parte das minhas tardes na casa da vovó era quando eu estava andando de bicicleta no quintal e, de repente, era interrompida pelo aroma dos biscoitos de polvilho. Era quando eu gritava “vó, já tá pronto?” e ela gritava de volta “tá quase, pode ir lavar as mãos”. E eu saía, correndo, para pegar os biscoitos ainda quentes.

São memórias antigas, mas tão marcantes que se me perguntarem hoje o que é um lar para mim, a minha primeira resposta será “cheiro de biscoito de polvilho sendo fritado” ou todas as outras lembranças que remetem à casa da minha avó Celina. Mas há outras memórias que constituem as minhas diversas definições de lar. Como, “lugar de acolhimento quando as coisas dão errado”. Com 18 anos, eu saí da casa dos meus pais para ter minha independência, mas tive que voltar aos 19 porque eu passava por dificuldades. Mesmo machucada e triste por não ter conseguido me virar sozinha, eu me senti acolhida pelos meus pais e irmã, que me receberam de braços abertos, sem julgamentos. “Aqui sempre será sua casa, filha”, foram as palavras do meu pai no dia do meu retorno. Lar, lugar de acolhimento.

Mas “lar” não é só físico. Tem gente que é lar. Eu tenho amigos assim, que não há hora para ligar, para chegar, não precisa pedir permissão e nem pagar aluguel. Seja um momento bom, seja ruim. É a eles que eu recorro com a sensação de que estou em casa. Tem amigo que, quando eu abraço, sinto aquele aconchego, aquela paz que a gente só sente na casa da gente. Sensação gostosa essa de sentir liberdade para viver e ser você no espaço do outro.

Pensando nessas três definições, “lar” não pode ser conceituado pelo ambiente. São as pessoas que tornam determinado lugar um lar ou se transformam em um para alguém. E dentre essas pessoas, há aquelas especiais, capazes de tornar e de ser ao mesmo tempo, como a minha avó. Dona Celina, que além de ser o meu “lar”, deixou gosto de lar por onde passou.

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