Lembranças de um Homem sem Memória

Sonia Marques
Clube da Escrita Afetuosa
4 min readJun 17, 2022

Desafio 02jun22 — Clube da Escrita

fonte:pixabay.com

Era um agradável e solar dia de outono. O calor do sol amainado por uma brisa fresca. A tranquilidade matinal de domingo. Os netos foram passear na praça. A nora preparava o almoço. Enquanto Pedro Jorge, gentilmente, cuidava do jardim. Tarefa que já foi sua. Pedro, sentado, confortavelmente, próximo ao filho. O qual ia relatando as condições de cada planta e as diligências que tomava com cada uma de suas “filhas”. Assim o pai as chamava há pouco tempo.

Pedro, cabelos grisalhos, bonitos, face rosada, barba bem-feita, corpo já mais magro, mas aparência saudável, vestido com seu conjunto predileto, de moletom azul (o azul lhe caía bem, achava), cheirinho de água de barba que sempre fez questão de colocar. Bem cuidado. Olhos escuros, fixos, já sem brilho. Ficava a maioria do dia olhando para dentro. Ouvindo seu silêncio. Imerso no seu vazio.

Vez ou outra…

“Jorge, onde está Antonia?” O filho lhe diz que a mãe já não está aqui. “Onde ela foi filho? Fazer compras?” Não pai, a mãe já faleceu há anos. “Não é possível, tenho pra mim que estivemos passeando na praia ontem. Faz quantos anos?” Vinte e dois anos pai. “Tá brincando!” Pedro sacode a cabeça e dá umas batidinhas na testa, da mesma forma que, antigamente, batia na TV quando não pegava o canal. Por alguns instantes fica reflexivo.

“Jorge, tava pra te falar isso. Minha memória tá me falhando. A gente tem que falar com algum médico. Tomar algum remédio, né filho?” O filho seguia sua atividade, mas olhava para o pai dando-lhe atenção. Pai, a gente já foi ao médico e você toma dois remédios para ajudar nisso. “Eu tomo uma “caravana” de remédios. Ali tem pra isso?” Tem. Dois dessa “caravana” servem para diminuir a velocidade dessa doença que faz a memória falhar. “Tem cura?” Não pai. Ela é uma doença da idade. “Jorge, quantos anos mesmo eu tô? Misturei o direito com o esquerdo e já nem sei”. Pedro solta uma gargalhada. Ele e o filho riem. Pai, tu tens oitenta e dois anos. “Já?! Por isso… estou na prorrogação”. Os dois seguem rindo.

Pedro olha em volta e vê um colchão escorado na parede, ao sol. Fica perdido naquela imagem. O filho termina a lida no jardim. Faz um vai e vem, organizando e guardando os objetos. Varre a terra que resta espalhada na varanda. Decorrida mais de meia hora, Pedro interpela o filho num tom solene — “Filho, fui eu que fiz xixi naquele colchão?” Pedro Jorge pensou em mentir, mas o pai odiava mentira. Vai que sabe que fez e está lhe testando. Não queria magoá-lo, entretanto, teve que dizer a verdade. Foi sim pai, esta noite. Pedro o olha bem fundo e num tom triste diz ao filho — “Não sei se já lhe contei esta história Jorge. Isso é muito marcante pra mim”. Pedro estava com os olhos avermelhados e cheio de lágrimas. “Eu apanhava muito quando era pequeno. Tinha dois anos quando minha mãe me abandonou naquele lugar. Me deixou lá e nunca mais voltou pra me buscar. Eu fazia xixi todas as noites. Lembro como se fosse hoje, apanhava com palmatória. Tu nem sabe o que é isso. Era das antigas. Era como se fosse uma colher bem grossa de madeira. Tinha buracos na ponta. Parecia mais uma espumadeira, sabe? A gente tinha que ficar com as mãos estendidas e firmes. Eles batiam com toda a força com a parte dos furos. Sugava a carne. As mãos ficavam inchadas e cheia de bolas roxas. Se a gente baixasse a mão, apanhava o dobro.” Enquanto as lágrimas escorriam, Pedro ria da crueldade que lhe era imposta. “Isso era feito na frente de todo mundo. Pra dar exemplo. Educar, diziam. Só tinha meninos lá. Ao menos onde eu ficava. Aquele lugar era enorme. O quarto onde a gente dormia era cheio de camas. Fileiras de camas. E quando saía dali, tinha um labirinto de corredores, cheio de portas. Tudo parecia igual. Fecho os olhos e tô vendo. O chão era todo de madeira escura, bem brilhoso. Os meninos maiores que limpavam e lustravam.” Pai, lembra o que fazias? “Não consigo lembrar. Eu era muito pequeno.” Pai, por que não ias ao banheiro fazer xixi? Assim não iria apanhar. “Isso eu lembro filho. Lembrei aqui dentro sempre.” Pedro coloca a mão no peito. “Lembrei a vida toda”. Lembra da dor pai? “Não. Lembro do medo. Eu sentia muito, mas muito medo. Aqueles corredores eram escuros. Se eu saísse do quarto me perderia. Tinha um medo tão grande que era maior que a dor de apanhar. Sentia vontade de fazer xixi e pensava — não vou lá não. Aí o xixi começava a sair. Quando eu sentia que já tava quentinho o pijama. Pronto. Já fiz. Vou apanhar mesmo. Agora vou continuar dormindo e amanhã apanho e pronto!” Pedro voltou a gargalhar, enquanto as lágrimas escorriam.

Jorge pega a mão do pai, olha nos olhos dele e diz — Sim pai você já me contou essa história. Muitas vezes. Mas sempre me impressiona já ter passado oitenta anos e você lembrar dela com tanta nitidez. Pedro diz — “É eu sempre tive uma boa memória. Agora que anda me falhando. Tava até pra te dizer isso. Mas filho eu já tô com quantos anos?” Oitenta e dois pai. “Bah, tudo isso? Nem lembrava. Jorge, onde foi mesmo a Antonia? Fazer compras?”

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Sonia Marques
Clube da Escrita Afetuosa

Aprendiz de escritora - @sousoniamarques Compartilhando experiências - formada em Adm Florianópolis/SC