Lembranças sagradas que dão saudade

Michelli Possmozer
Clube da Escrita Afetuosa
2 min readMar 28, 2022

Essa caixa de fotografias me remete à casa da minha avó Celina. Ela já faleceu há alguns anos, mas as lembranças permanecem vivas em minha memória. Na casa da vovó havia, não uma caixa, mas uma sacola cheia de monóculos, aquelas peças de plástico em formato cônico, com uma lente de aumento em uma extremidade e, na outra, uma foto. Eu e meus primos adorávamos pegar a sacola de monóculos, espalhar todos em cima da mesa e tentar adivinhar as pessoas que estavam em cada fotografia. Era bastante divertido observar as roupas da época, os cortes de cabelo, os bigodes que eram uma marca característica dos homens, as imagens em preto e branco.

Minha avó adorava os monóculos. Aquelas minifotografias eram sagradas para ela. Quando acabávamos de vê-las, tínhamos que guardar tudo na sacola para não haver risco de se perderem. Chegava a ser chato o fato de vovó fiscalizar se estávamos cuidando direitinho de suas lembranças. Quando crianças, achávamos excessivo. Hoje, admiro esse lugar sagrado que as fotografias ocupavam nos monóculos, nas caixinhas antigas e nos milhares de porta-retratos espalhados pela casa dela, além dos álbuns de família. Hoje, os registros fotográficos de nossos momentos passados deixaram de ocupar esses lugares físicos para habitar em abundância o ambiente digital, nos álbuns do Instagram e do Facebook. Deixaram de ser sagradas.

Numa viagem que fiz ao Peru, em 2019, conheci uma portuguesa que carregava uma câmera instantânea, daquelas que a foto é revelada na hora e cada filme tem uma quantidade limitada de fotos. Ela falou que preferia registrar os momentos de suas viagens dessa forma a utilizar o celular ou a câmera digital, porque, sempre que dava saudade, era só pegar as fotos na caixinha ou olhar para o mural de fotografias na parede do quarto. Havia também o fato de ela procurar escolher o melhor momento para fazer a foto, já que não podia “desperdiçar” o filme da câmera instantânea, desperdício que nunca acontece no digital, que possibilita infinitos registros. Achei bonita essa maneira sagrada de a portuguesa lidar com suas lembranças.

A infinidade de registros fotográficos que o digital suporta e os milhares de álbuns que nos oferece a um custo zero encanta, no primeiro momento. Mas eu não consigo ver nada de sagrado ali, como via nos monóculos de minha avó, nas caixas de fotografias antigas e na câmera instantânea da portuguesa. O digital é profano. Transgrediu o lugar sagrado que as lembranças ocupavam e relegou-as ao esquecimento. A infinidade de fotos que podemos guardar ali e a possibilidade de tê-las à mão a qualquer momento tirou de nós a sacralidade da lembrança, o ritual de pegar as fotografias na mão e, simplesmente, relembrar. Deu saudade dos monóculos da vovó.

#02mar22

--

--