Liverpool Forever

Ana Paula Gasparini
Clube da Escrita Afetuosa
3 min readJul 23, 2021

Qualquer destino de viagem me hipnotiza. Sendo local de língua inglesa, meu fascínio aumenta. Porque o contato com a cultura do povo enriquece não somente minha bagagem pessoal, mas também profissional. Trabalho com o ensino de inglês e por certo tempo participei de conferências na Inglaterra, que a cada ano ocorriam em uma cidade diferente. Em 2013, o encontro anual aconteceu em Liverpool. Não imaginava conhecer o noroeste da Grã-Bretanha. Nunca fui beatlemaníaca e pouco sabia sobre a cidade de Paul, John, Ringo e George. Mas a oportunidade surgiu e me trouxe, além de conhecimento técnico, muitas reflexões de vida.

Nas manhãs cinzentas de uma primavera pouco comum, eu seguia do hotel ao centro de convenções. Contra o vento gelado que vinha do Rio Mersey, caminhava por Albert Dock, com passos ligeiros e olhos comprimidos sob o capuz do casaco. Ao longo das docas, apreciava as lojas de longe. Entre elas, estava a Beatles Story. Foi lá que num final de tarde comprei meu ingresso para o Magical Mystery Tour, passeio feito numa réplica do ônibus amarelo do filme de mesmo nome. Produção dos próprios Beatles, lançada em 1967, ano em que nasci. O tour percorreu locais relacionados à vida e obra dos meninos de Liverpool. Minha mente percorreu caminhos inquietos de mistério e magia. Dentro do ônibus, a música dos Beatles e as histórias das canções. Em certos pontos, o motorista parava e os viajantes desciam. Lá ia eu, câmera presa às mãos, imaginação solta no tempo.

Em Penny Lane, toquei na placa da rua imortalizada por McCartney. Pensei no lirismo da canção, encontrando poesia no cotidiano. O barbeiro, o bombeiro, a enfermeira. Pessoas comuns no dia a dia, observadas por olhos que saboreiam, num tempo sem pressa. Pensei em como cada um de nós poderia tornar imortal a rua em que vivemos, o bairro onde moramos ou os lugares que frequentamos. Não falo em levar nossos arredores mundo afora, mas em valorizá-los mundo adentro. Parar, estar, sentir. Com vagar, com gosto.

Em Strawberry Field, contemplei o portão vermelho do antigo orfanato que inspirou Lennon. Pensei nos campos de morango que cultivamos na infância e deixamos para trás. O bichinho de estimação, o cantinho de esconderijo, o diário secreto, tudo que nos trazia alegria muito própria. Recuperar a doçura do passado nos ajuda a enfrentar as amarguras da vida adulta. A fonte de inspiração de Lennon me fez lembrar onde buscar as motivações mais íntimas para seguir adiante.

Em Forthlin Road, conheci a construção de número 20, onde Paul viu a partida da mãe e a chegada do sucesso. Ao mudar-se para a casa de tijolos vermelhos, o menino não imaginava tantas mudanças no seu destino. Morte e nascimento. Casa desabando e se reerguendo. Assim é a vida: morada sem paredes, portas por abrir, chão e teto que se refazem, mesmo quando parecem desmoronar. É preciso acreditar.

O passeio chegou ao fim e a magia permaneceu dentro de mim. Foi um ticket to ride além das horas do relógio. Não somente um tour temático, mas uma viagem através do universo. Meu universo particular.

Liverpool foi uma caixinha de boas surpresas, uma cartola mágica de onde o inesperado saiu. Às lições de fora, somei aprendizados que brotaram de dentro. Trago comigo as músicas que ficaram em meus ouvidos e os locais que ficaram nos meus olhos, bem ao estilo de Penny Lane. In my ears and in my eyes. Ou ainda, ao estilo de Strawberry Field, poderia dizer Liverpool Forever.

Clube da Escrita — julho 2021 — desafio #004 (uma crônica lírica)

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Ana Paula Gasparini
Clube da Escrita Afetuosa

Ao escrever, vou conhecendo pouco a pouco meus dois mundos: o que habita em mim e aquele onde habito. instagram @portasdoverso