Matéria-prima
Ela vivia pra cuidar da família. Sua prioridade e senso de propósito nesta existência. Ser maternal! A palavra que a define melhor é ser a matéria-prima. Todos os dias. Exatamente igual.
Ela se levanta antes mesmo das filhas e do marido. Acorda a mais nova. Depois, o marido. Prepara o café da manhã com uma pressa ressabiada pelo tempo que corre rápido.
Tempo que, para ela, não deixou brechas para pentear o cabelo, escovar os dentes, passar batom.
Mesa arrumada. A filha chega, maquiada. Copiou a produção que viu no youtube na noite anterior. Esfumaçou as pálpebras. Cabelos sem frizz, cachos definidos, cílios postiços. A mãe olha pra ela e se orgulha da beleza da juventude.
A filha reclama do suco: “está meio aguado”. A mãe pensa que deve ser porque o suco lembra sua rotina, sem gosto e nem densidade.
A filha sai para o trabalho. O marido chega para o café. Senta na mesa com olhar cansado, faz uma pausa buscando força no oculto da alma. Tão sem vulto que não pôde acessar. Desiste.
Pede o café com bastante açúcar. Pinga leite desnatado. “Não tem pão?”, pergunta. Ela: “só tapioca com manteiga e queijo branco”.
Ela está beirando os quase 100 quilos, apesar da pouca altura: 1 metro e cinquenta. E a prática budista tem lhe dado sabedoria e razão para variar o pão por tapioca. A manteiga, ela ainda não conseguiu largar.
Ele a olha com cumplicidade e sorri: “Está muito boa a tapioca”. Na ida para o trabalho, ele para na padaria e pede um pão na chapa. Também está acima do peso, mas não alcançou o estado de Buda da esposa. Ainda falta-lhe ânimo para sustentar acordos internos.
Todos saem, ela fica só. Liga para a filha mais velha. Parece que hoje ela está bem, mais tranquila. Vive às voltas com crises de ansiedade e a mãe já entendeu que, nestes momentos, só resta acompanhar. Estar ao lado em presença despretensiosa.
Depois ela liga para a própria mãe. Apesar de ter irmãs, a lida com a mãe é mais uma missão assumida por ela. Ninguém sabe fazer melhor.
A mãe da mãe diz que não quer comer, que dói o estômago. Não sente fome.
Ela desliga e sai à procura na dispensa da casa. Decide-se a combater! Mais um desafio a vencer no lar estendido. Os filhos e nem o marido comem mais em casa. Então, ela encontra abrigo na fragilidade da mãe da mãe. Utilidade.
“Vou fazer uma comida bem gostosa pra ela”, diz pra si mesma, esperançosa. Faz seu prato preferido: arroz, feijão bem temperadinho, farofa de ovo e bife a rolê.
A mãe da mãe a recebe com expressão desinteressada. Percebe o cheiro da comida e o orgulho do esforço da filha a habita. Ela come pouquinho. Sem a filha perceber que é forçado, apesar do tempero acertar nas suas preferências. É que ela anda perdendo a vontade de comer assim como a de viver. É processo!
As duas comem juntas e se despedem. A mãe pensa na casa pra limpar, na roupa pra lavar e passar. Sente o joelho doer de forma intensa. A casa, ela mesma reformou com o marido.
Fizeram toda a reforma, item a item. Pra quem a visita, ela conta orgulhosa da parede que raspou até chegar ao tijolinho aparente, do piso de cimento queimado que ela mesma aplicou, das instalações elétricas.
Entrou em casa e tomou fôlego. Começou a limpar pela cozinha. Gosta de limpar tudo com desengordurante. Depois foi ao banheiro, também desengordurando. Na sala, usou lustra-móveis nas estantes e no armário que ela mesma patinou. O chão, finalizou com cera incolor.
Por fim, jogou água sanitária no quintal para limpar os cheiros dos animais. Ela tem 4 gatos, 1 papagaio e 3 cachorros; dois são da filha, mas ela quem cuida.
Terminou bem próximo ao pôr-do-sol. Jogou-se no sofá retrátil que o marido conseguiu como doação da loja da rua de cima.
O corpo dela preencheu o sofá. Afundou na profundidade. Pela janela, via a rua agitada pela volta dos trabalhadores para casa.
Lá dentro, havia um silêncio em tudo! A sensação de missão cumprida a envolveu até que pegou no cochilo. Apesar dos joelhos continuarem doendo, ainda mais que antes.
Acordou com o marido abrindo a porta da casa. Ele a viu dormindo e falou: “Vida boa hein”! Ela fingiu não ter ouvido, era especialista em calar incômodos sobre si, e perguntou: “Como foi seu dia, querido?”.
#02nov