Memórias da travessia

Lu Rodrigues
Clube da Escrita Afetuosa
3 min readJun 19, 2022

Quando eu tenho dias difíceis, lembro-me da travessia. De quando virei mãe. E tudo mudou. Sim, eu quis muito a maternidade. Mas nunca ninguém falou comigo sobre o puerpério, o famoso período “pós-parto”.

É quando tudo se transforma ao redor. Mas o tempo congela. Os dias são longos. E as noites, imensas. No puerpério, eu me acostumei a ver o mundo pela janela. Todos estavam ocupados demais. Trabalhando. Se divertindo. Praticando esportes. A vida pulsava lá fora. Mas dentro de mim, pedra. Estagnação. Tudo se resumia a conseguir comer, tomar banho e dormir.

Sobreviver.

Sim, sobreviver aqueles dias iguais não foi nada fácil. Dias que se repetiam feito disco de vinil riscado. Com uma música ora alegre por ter um novo amor nos braços. E ora triste por estar se despedindo de outro amor: a minha mãe.

Pós-parto já é difícil de qualquer jeito. Mas no meu caso, não teve só cansaço e insegurança. Teve perda. Minha mãe foi diagnosticada com um câncer raro, pouco antes do nascimento do meu filho. Então, o que era para ser o momento mais alegre da minha vida virou também o mais triste.

A tristeza teimava em encher o meu peito. Mas eu a tirava com um conta-gotas. Eu não queria amamentar o meu bebê com leite amargo. Não me permitia ficar triste ou chorar. Nem esbravejar de raiva por não ter a minha mãe por perto naquele momento. E era o que eu mais queria, sabe?

Tê-la ao meu lado para fazer a minha travessia: de filha para mãe.

Eu já contava com as cenas da dona Cida me ensinando a dar banho no meu filho, o Rafael. Ela iria me mostrar como trocar as fraldas dele e evitar as assaduras. Eu já contava até com os palpites que eu não ia ouvir. As sopas de legumes que ela iria preparar para mim e trazer de casa num tupperware velho. E eu, bem cara de pau, ia aproveitar para pedir: “Mãe, traz também da próxima vez o bolo de milho?”.

Mas nada disso aconteceu. O filme que rodou na minha cabeça não foi gravado. Não virou memória. Em seu lugar, vieram os relatos da primeira cirurgia exploratória. Dos remédios. Do início da quimioterapia.

E o que ficou registrado na minha mente foi a angústia. A solidão. Eu só tinha uma certeza: não queria perdê-la. Mas assim como não controlamos as chegadas, não impedimos as partidas.

E ela se foi.

Fiquei com um bebê nos braços. A quem eu me apeguei demais para não desmoronar feito árvore seca. O Rafael me salvou da queda livre.

Oito anos depois disso tudo, ainda penso em como sobrevivi aquela fase. E sei que a resposta está no meu filho. Todas as vezes que coloco ele para dormir, lembro-me das madrugadas em claro no puerpério. Enquanto cuidava dele, pensava na dona Cida.

E se hoje percebo a minha vida do avesso, vejo como tudo parece bobo diante daqueles dias solitários. Depois daquela passagem, sei que jamais fui a mesma.

Perdi a minha mãe quando virei mãe.

Foi uma travessia dolorosa. Mas hoje consigo ver nela as flores, apesar dos espinhos. A dona Cida soube que foi avó. Ela teve o Rafael nos braços. Nós a fizemos sorrir. E ela fez sua última travessia cercada de amor.

#01jun22

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Lu Rodrigues
Clube da Escrita Afetuosa

Escritora e jornalista. Aqui publico meus textos da comunidade de escrita da Ana Holanda. Site: www.maenuscritos.com.br Insta:@lurodriguesescritora