Memórias que fazem sorrir

Michelli Possmozer
Clube da Escrita Afetuosa
4 min readApr 5, 2022

Quarta-feira. Estava abafado, ônibus lotado, às 6h05 da manhã. Mais um dia típico em que Ana faria o trajeto até o trabalho em pé. No meio dos passageiros, à sua frente, avistou uma senhora de aparentes 55 anos, cabelos um pouco grisalhos, em pé, segurando a sua bolsa vinho, visivelmente desgastada pelo tempo de uso. Ana se agarrava, distraída, à barra de apoio do ônibus ao som de “How deep is your love” em seus fones de ouvido quando aconteceu. Seus olhos ficaram estatelados diante da cena. Um sorriso estonteante ofereceu seu lugar para a senhora da bolsa vinho se sentar. Era um homem, aproximados 30 anos, 1.85m, cabelos curtos e olhos negros. Mas Ana só tinha olhos para aquele sorriso, que se convertia na gentileza de quem cedia o lugar para o mais velho. Coisa rara nos dias de hoje.

Apesar de ouvir músicas internacionais da década de 70 e ser fã de comédias românticas, Ana não pensou que, aos 23 anos, seria vítima da flecha do cúpido dentro do transporte público. O tempo todo do trajeto no ônibus, ela não conseguia parar de olhar, admirada, para aquele que chamou de “Sorriso”. Num momento, ele pareceu se sentir fitado pelo olhar fixo de Ana e retribuiu, escancarando os lábios. Mas não foi o mesmo sorriso de gentileza que deu para a senhora da bolsa vinho. Pareceu um sorriso de curiosidade com misto de embaraço e de “também quero te conhecer”. Ana sorriu de volta, embaraçada pelo flagrante, e despistou o olhar para a janela. Sentiu uma leve brisa em seus cabelos, que pareceu invadir gentilmente aquele ambiente abafado. Fechou os olhos, imaginando como seria se sentar com o Sorriso num café, tomar um cappuccino e dar boas risadas. Ela, em questão de minutos, naquele transporte coletivo, sentiu tudo mudar dentro dela. Ana queria, desesperadamente, beijar o dono daquele sorriso e daquela gentileza admirável. Ela queria ouvir a voz do Sorriso. Ela imaginava suas gargalhadas quando abriu os olhos. Não sentiu mais a brisa do vento. A senhora da bolsa vinho continuava lá, sentada e feliz. Mas o Sorriso havia ido embora.

Dias se passaram, Ana não encontrou mais o Sorriso em suas viagens pelo coletivo. Procurou nunca se atrasar para pegar o ônibus do mesmo horário daquela quarta-feira, mas sem sucesso. Até que, um dia, na volta do trabalho, por volta das 18 horas, viu o Sorriso entrar no coletivo. Ana chegou a sentir um frio na barriga e um embaraço quando percebeu que os olhos do desconhecido também miravam os seus. E sentiu derreter-se na cadeira quando ele sorriu para ela, de um jeito maroto, com misto de surpresa e alegria. Por sorte, o ônibus não estava lotado e havia um lugar vago na cadeira na frente de Ana, onde ele se sentou. Durante todo o trajeto até o terminal rodoviário, Ana e Sorriso trocaram olhares e risinhos envergonhados. Nas mãos do desconhecido, não havia sinal de compromisso, assim como nas mãos de Ana. Mas ela não se atreveu. Ela pensou por diversos momentos em dizer “oi” ou perguntar o seu nome. Mas não o fez. Assim como o Sorriso.

Quando desceram do ônibus no terminal, Sorriso olhou para ela e disse “tchau”, quando ela teve a oportunidade de conhecer sua voz aveludada, que emanava gentileza e doçura, assim como ela havia idealizado em pensamento. Ele foi para seu destino e ela seguiu o próprio caminho, pensando quando o veria de novo e, finalmente, tomaria coragem para indagá-lo. Da próxima vez, ela diria “oi” e puxaria uma conversa. Mas essa próxima vez não chegou. As viagens nos coletivos foram ficando cada vez mais abafadas, sem a brisa do vento, e Ana nunca mais encontrou o Sorriso.

Por muitos meses, Ana pensou como teria sido a sua vida se ela tivesse dito “oi” naquela quarta-feira ou no outro dia que o viu. Foi difícil viver aquela paixão platônica à primeira vista, mas, a cada viagem sem ver o Sorriso, ela foi se acostumando com a ausência até não doer mais. Hoje, passados 15 anos, Ana está casada, tem uma filha e vive feliz com o homem que se tornou o grande amor da sua vida. O tempo e a maturidade apagaram o sentimento platônico, mas o sorriso gentil do desconhecido e a sensação da brisa do vento em seus cabelos continuam guardados na memória. Hoje, ao pensar nessas lembranças, Ana não sente arrependimentos. São memórias que lhe dão mais um motivo para sorrir.

#01abr22

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