Crônica

Mesa pra dois?

Angela Halat Portugal
Clube da Escrita Afetuosa
3 min readMay 17, 2022

--

Foto: @k8townsend

Um bom garçom é como o coro das tragédias gregas. Faz intervenções dramáticas aleatórias, cadencia o ritmo das conversas. Entra e sai de cena, evidenciando a cada aparição o espetáculo de gosto duvidoso que se desenrola em cada mesa.

Suas falas são curtas, às vezes monótonas e múltiplas em significados. Um simples “vai mais uma cerveja?” pode ser a deixa perfeita para o casal frustrado pedir a conta e ir embora. O primeiro e último encontro. “Não foi dessa vez, não foi dessa vez. E nunca será”, sentencia o garçom ao entregar as balinhas junto com o troco.

“Vai mais uma cerveja?” pode ser também um convite para ganhar fôlego e dizer o não dito. O bom garçom é a solução improvável para os relacionamentos que, com dedos engordurados, cortejam o abismo. Um plot twist. Um deus ex machina que aparece do nada, presenteando os meros e mortais clientes com uma solução a que eles jamais chegariam por conta própria. “Fale, ouça, peça, ofereça! Fale, ouça, peça, ofereça!”, repete mudamente o garçom, acompanhado por sons de copos batendo e um parabéns desafinado.

Os aniversários, aliás, são o palco preferido dos garçons. Com indiscutível superioridade e ocasional compaixão, eles acompanham as pessoas na tragédia ou comédia (pastelão!) de comemorar em público mais um ano de vida. Não há como atravessar com dignidade um parabéns cantado no bar. Será ridículo de toda maneira. Se todas as pessoas cantarem juntas, derem gritinhos, assobiarem, será ridículo. Se o parabéns vier apenas de uma mesa, ignorado ou reprovado pelo restante da clientela, ridículo será também.

Mas, como filosofam os garçons, dar-se ao ridículo é uma forma dos meros mortais pedirem e ganharem atenção. E dar-se ao ridículo diante de estranhos é uma catarse controlada. Um lampejo de loucura ou de vulgaridade com o qual não é preciso se comprometer no dia seguinte. Uma válvula de escape, uma máscara de oxigênio que nos oferece generosamente o garçom enquanto segura um prato de chantili com um vela incandescente. “Sinto muito! Parabéns! Sinto muito! Parabéns!”, repetem em uníssono os garçons, indecisos se nos desejam ou não muitos anos de vida.

Um bom garçom sabe dosar sua presença em cena. Permanece mudo e dá tempo suficiente para os casais que passeiam maliciosamente pelo cardápio, rindo sem motivo, numa estranha dança de acasalamento. “Você gosta de pimenta?” Risinhos. “O que você quer comer hoje?” Risinhos. “Você é quem sabe.” Risinhos.

Nessas horas, o bom garçom já sabe o que dizer: “E a sua namorada, gostaria de tomar o quê?”. Risinhos. “Ela não é minha namorada. Ainda”. Risinhos de incontido prazer. “Vinho da melhor safra?” Risinhos. “Prato especial do chef?” Risinhos. “Uma sobremesa para dividir a dois?” Risinhos. Conta paga, gorjeta generosa, casal em êxtase. Risinhos. Nada faz mais feliz o garçom do que uma boa gorjeta e o senso de dever cumprido. “É hoje. É hoje. De hoje não passa”, abençoa.

O bom garçom também sabe reconhecer os casais em crise. É prestativo, sugere o prato do dia para poupá-los de ter que fazer juntos mais uma escolha infeliz. Um prato rápido, sem sabor nem complexidade, e que é recebido com um suspiro de alívio ao encurtar a pena daqueles que foram condenados a dividir por meia hora o mesmo metro quadrado. Pessoas assim gostam da presença do garçom, fazem muitas perguntas sobre o prato, fingem interesse nos ingredientes e no modo de preparo. Apenas para evitar o silêncio e a intimidade do mastigar a dois.

Refeição rápida, conta paga, gorjeta mais generosa ainda. Casais infelizes compensam a culpa na benevolência com o garçom. “Que Deus os proteja! Que Deus os proteja! Que Deus os proteja!”, repete ele. Mais do que um desejo sincero, é quase uma premonição, um plano de contingência para o que ainda está por vir.

Garçons são letrados em gente! Os bons garçons pelo menos.

Já os ótimos viram garçons de churrascaria. De rodízio. À menor tentativa de diálogo, nos lançam uma fatia de costela ou de pão de alho. Não há conversa possível diante de um espeto corrido! Um espetáculo sem máscaras em que só nos interessa o que é da carne. “Está servido? Está servido? Está servido?”, repetem surdos os garçons, nos poupando da nossa própria companhia.

Clube da Escrita | Desafio 01 — Maio 22

--

--

Angela Halat Portugal
Clube da Escrita Afetuosa

Nerd e curiosa desde sempre. Interesses tão variados como um armazém de secos e molhados. Nado, trabalho, vivo, leio e às vezes escrevo.