Meu guardião da música

Natália Figueiredo
Clube da Escrita Afetuosa
3 min readJun 15, 2021
Photo by Carlos Costa on Unsplash

Cinco linhas com pequenas bolinhas e tracinhos ocupando seus espaços. O professor alto, magro e de voz macia fazendo sons estranhos com a boca, em ritmos de duração variáveis para apresentar o que dizia ser a leitura de uma partitura. Também fez a gente desenhar uma forma redonda engraçada e a chamou de Clave de Sol.

Estávamos na terceira série do ensino fundamental. Por mais que seja verdade que quase toda criança gosta de música, quase ninguém se interessava pela aula de teoria musical. Ainda éramos novos demais para relacionar o pensamento e a prática.

Dentre as poucas atenções que o pobre do professor conseguia prender, estava a minha. Mesmo sem saber muito bem a relação daquilo com o que eu ouvia nas rádios, eu conseguia entender a lógica daquelas bolinhas e tracinhos saltando diante da minha vista e quase sempre acertava a leitura quando era solicitada. Os olhos do mestre então brilhavam, o que me motivava ainda mais: tímida que era, nunca me destacava na aula fora da folha de papel.

E assim, nessa dança, de quem ensina e aprende, foi nascendo uma paixão pela música e uma amizade por toda minha infância e adolescência. Convidada por ele, participei da orquestra e coral do Colégio, aprendi os primeiros acordes do violão, a gostar de Beatles, MPB e música clássica.

A cada desafio, de uma nova música ou do medo de uma apresentação, sempre uma palavra de incentivo: elogiava minha voz e minha performance, muitas vezes publicamente. E o que poderia ser apenas um professor apreciando uma aluna, virou uma voz que me acompanha em minha cabeça até hoje.

Na minha família não há músico algum, nem aquele tio que toca viola no fim de semana, nem uma prima que canta no coro da igreja, nadinha. Nossa história é toda feita de comerciantes, gente que entende de sapato, roupa, vendinha e boa conversa. Já as canções, estavam apenas nas fitas, CDs e rádios de pilha que nos acompanhavam no dia a dia. Eles apreciavam meu canto, minha música, mas nunca me incentivaram a seguir para valer esse caminho, pois tudo o que sabiam sobre músicos era que ganhavam mal, e com o suor que davam para pagar meus estudos, melhor seria investir em uma carreira menos instável, disseram, sem essas palavras exatas.

Por isso, na dúvida, segui outros caminhos e fui deixando essa paixão de lado. Mas sempre que tinha uma brecha, aparecia um violão, um karaokê, havia sempre um amigo dizendo: “caramba, eu não sabia que você cantava assim…” E sabe qual rosto eu via na minha frente? O do tal professor dizendo “ eu acredito que você”.

Até que depois de alguns anos da vida adulta, eu passei por um momento de tristeza mais conhecido como “coração partido” e para voltar a me animar decidi ouvir essa voz que nunca deixou de soprar levinho em meu ouvido. Voltei a estudar música e ela foi habitando com cada vez mais força meu interior. Para minha surpresa, nasceu também uma compositora.

E outro dia, voltando da aula de canto, no exato momento que eu estava pensando que talvez aquilo fosse uma besteira de menina, esbarrei com aquele professor da infância. Trocamos algumas palavras, falei sobre o que eu estava fazendo e ele muito animado se interessou e pediu para eu convidá-lo caso faça alguma apresentação. Desde então o batizei de meu guardião da música, sem ele saber.

Neste caminho que ainda não sei onde vai dar, se vai tomar muitas partes da minha vida ou se vai sumir aos poucos, o importante foi não mais calar a voz da minha criança que nunca parou de sonhar em cantar. E tudo graças a um olhar que um dia acreditou que ela seria capaz.

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Natália Figueiredo
Clube da Escrita Afetuosa

Da tentativa de achar a palavra certa e nunca encontrar, nascem meus textos | insta: @nataliafig