Meu lar é um avião
Cresci numa família com alma cigana. Antes dos 18 anos, já havia morado em quase tantos endereços — e cidades — quanto meus anos de vida. Nesse modo desapegado de viver, lar tornou-se um conceito abstrato. Nada tinha em comum com outras crianças, que cresciam no mesmo quintal, guardavam a primeira chupeta ou boletim da escola. Minhas lembranças iam se perdendo em meio às caixas de mudança.
Foi nesse contexto que aceitei o convite de uma tia para estudar na capital federal. Juntei as poucas coisas que tinha e segui rumo a Brasília. Na mala, mais do que objetos pessoais, eu levava a vontade de criar raízes.
Os primeiros meses foram difíceis. Entoava como mantra a ideia de que aquela não era uma cidade estranha, apenas desconhecida. Consolava a mim mesma dizendo que, em breve, eu encontraria amigos na rua, teria meus lugares favoritos, não me perderia mais no conjunto de siglas que dá forma ao avião brasiliense.
A profissão de repórter ajudou na empreitada. As pautas me levavam de ponta a ponta — dos lugares mais ricos aos mais pobres, dos mais lindos aos mais problemáticos. Enquanto dominava a geografia, fazia também amigos para vida. As colegas de faculdade que se firmaram irmãs, os chefes que viraram mentores, os parceiros de trabalhos que se tornaram amores.
Brasília virou lar definitivo com o casamento e a chegada dos filhos. Criar a nova geração de brasilienses fincou minhas raízes na cidade. Raízes que ficaram ainda mais fundas quando troquei a redação de jornal pelo serviço público, estreitando de vez meu laço com a Esplanada e tornando diário meu caminhar pelos cartões postais da capital.
Hoje lar para mim são as florações do ipê na seca — primeiro os roxos, depois os amarelos e, por último, o ipê branco, meu preferido. É não reclamar mais da chuva incessante em janeiro, quando o país resplandece no verão. É ocupar gramados com piqueniques e apreciar o pôr-do-sol em qualquer canto da cidade.
É não mais responder que vim da Bahia quando, nas viagens de férias, me perguntam de onde sou. É estranhar buzinas no trânsito. E mais ainda quando desconhecidos puxam conversa na rua. Lar hoje para mim é Brasília. É sentir vontade de ficar, de voltar, de nunca sair.
02abr22