NEM A CIGANA LÊ O MEU DESTINO

Maíra Matrone
3 min readNov 30, 2022

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Castor carente. A canção rolava no 3 em 1 da gradiente do meu pai, enquanto eu criava roupinhas de papel para boneca comprada na banca de jornal da esquina. Como é a psicologia dos animais? Por que o castor está carente? Como este compositor, julgado genial pela Ivana e pela Tia Lolô, tem o poder de decifrar o estado de espírito dos castores? Agora eu era criança, mas um dia quero ser Chico, saber o mundo. Quero aprender a colocar música dentro de um prato e ainda ter tempo para observar roedores sem amor.

No dia em que cresci o suficiente para alcançar a marca pintada de azul no batente da porta branca do banheiro, os ouvidos depuraram os versos cantados, o som cristalino e revelador me deixou estupefata. Não era Castor carente. Corri para me certificar que os meus tímpanos estavam em pleno funcionamento. O encarte dos LPs continha a letra das canções. E li:

Canta primavera, pá
Cá estou carente
Manda novamente
Algum cheirinho de alecrim

Uau! Havia passado uma vida (curta, agora sei) achando que o prodígio conversava com animais, mas na verdade ele falava de uma revolução portuguesa, cujo símbolo era os cravos. No mesmo dia, aprendi que pá, para os portugueses, era meu, o mesmo do orra meu cantado pela Rita Lee, e falado pelos amigos paulistanos da minha irmã mais velha, a Ivana.

Descoberto o tesouro. Todas as canções ouvidas desde pequena eram naquele exato momento novas, outras, desconhecidas, prontas para serem reveladas. E como toda poesia, ainda estão se revelando para mim. Nunca cessarão.

Nasceu meu primeiro filho. Ultrapassado o portal, do lado de cá o mundo era outro. Não me importava mais a canção que se ouvia na rádio, agora era leite, dentição, escola, era o primeiro passo e a primeira palavra. Era a fragilidade na qual nos encontrávamos diante de uma febre corriqueira de 37,9º.

Calçava galochas para pisar em terreno lameado. Durante o percurso percebi que era como vestir moletom na neve. Não há maneira de se preparar para o nascimento de um filho. Não há manual, não há teoria que dê conta da prática. O filho materializado em órgãos, cor, pele e cheiros provoca milagres. Desperta hormônios. Faz notar um eu que não é mais eu, um eu que somos nós.

Estava grávida novamente, desta vez uma menina. Eu, que já havia cruzado o portal, e sabia que não sabia nada, escondia um medo, quase infantil: Seria possível amá-la, como amava o primeiro? O filho só acontece quando nasce. A gravidez apenas antecede o abismo, ela não nos dá garantia. Foi possível! O milagre se deu mais uma vez e o mundo novamente aconteceu fora de mim. Uma viagem sem passagem de volta, sem fronteiras, sem roteiro como guia. O imprevisível que se corporifica a cada minuto.

Em uma tarde estranhamente tranqüila, cliquei em “As Minhas Meninas” do tal Chico, para tocar na playlist. Uau! Havia passado uma vida (não mais tão curta) e só agora a epifania daqueles versos. Ali, o som digital e límpido me cantava ao pé do ouvido:

Vão as minhas meninas
Levando destinos
Tão iluminados de sim
Passam por mim
E embaraçam as linhas
Da minha mão

Há anos eu sabia que as meninas de Chico embaraçavam as linhas de suas mãos, mas só com Luca e Marina pude assistir as minhas linhas se moverem embaixo da pele a olho nu, dia após dia.

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Maíra Matrone

Um caldo de histórias vividas e lidas. Autora do @cantehistoria, perfil que conta a História através da Música.