No silêncio da igreja

Barbara Fonseca
Clube da Escrita Afetuosa
3 min readJun 8, 2022

Uma igreja. Até hoje, passados vinte anos, não sei explicar por que meu pai, um ateu, escolheu uma igreja para termos aquela conversa. Talvez tenha sido pelo silêncio. Porque ele, o silêncio, era tão presente quanto nós naquele dia de 2002. Assim, éramos cinco sob a nave gótica de uma das igrejas mais antigas de Belo Horizonte, numa tarde azul de outono: eu, meu pai, minha mãe, meu irmão e o silêncio.

Eu e meu irmão não sabíamos nada sobre a ida à igreja. Naquela manhã, quando saímos de nossa casa no interior, o objetivo era visitar o nosso avô na capital, como era de costume nos finais de semana. Mas muitas coisas não se encaixavam naquele dia.

Ao chegarmos em BH, por exemplo, nossos pais nos levaram para passear pelo shopping e fomos mimados de diversas maneiras. Tivemos permissão para nos empanturrar de porcarias e até ganhei uma jaqueta jeans, coisa que há tempos vinha pedindo à minha mãe. Algo não estava certo.

Aí veio a ida à tal igreja. Não era exatamente um desvio da casa do vô, que vivia no mesmo bairro. Mas não fazia sentido parar ali, já que nem era hora de missa. Mesmo assim, paramos. Meus pais desceram do carro e a gente foi atrás a passos curtos, cuidadosos, como alguém que leva uma venda sob os olhos. E dessa maneira, cegos, fomos tateando a tensão que se formava no ar. Tão opaca como o silêncio de uma igreja às duas da tarde.

Nos sentamos em uma fileira de bancos ao centro do templo, éramos os únicos ali. Eu e meu irmão nos olhávamos como se tivéssemos perdido uma parte importante de alguma história da qual todos já sabiam. E a verdade era essa mesmo, como ouviríamos da boca do meu pai.

Vocês têm uma irmã, finalmente disse ele aos nossos ouvidos adolescentes, depois de um prólogo longuíssimo que não vem ao caso aqui. Vocês têm uma irmã, foi a revelação cozinhada durante todo aquele dia estranho, ou, quem sabe, ao longo de semanas, ou meses, até nos oferece-la ali, como um prato frio e indigesto, na solidão de uma igreja no meio da tarde.

Apesar de todas as explicações do meu pai, as palavras chegavam a mim como se fossem ditas num idioma estrangeiro. Nada fazia sentido. Ele tinha uma filha, mais jovem que eu, da qual ele também acabava de se inteirar. Como isso seria possível?

Antes de esboçar qualquer reação, busquei minha mãe com os olhos, esperando que partisse dela alguma pista de como deveríamos seguir. Mas o que encontrei me deixou ainda mais confusa. Minha mãe estava firme, tinha a cabeça ereta e uma das mãos apoiadas sobre o ombro do meu pai. Ela havia tomado uma das decisões mais difíceis de sua vida, a de perdoar uma traição. E diante daquela mulher tão digna, não nos sobrava espaço para besteiras infantis. Precisávamos ser adultos, ainda que contra nossa vontade.

Talvez por isso, eu e meu irmão tenhamos chorado tanto durante a conversa. Pela dor de crescer. Ou pela pena de descobrir essa verdade tão incômoda: a de que pais e mães não são seres iluminados, incorruptíveis, proibidos ao erro. Não sei direito, mas, naquela tarde de outono, eu, uma adolescente de 16 anos, chorei por várias mortes cujo luto me acompanham até hoje.

Devagarzinho, fomos normalizando o acontecimento. Cada um à sua maneira, minha família foi tentando se reinventar, tentando descobrir quem éramos nós depois daquela tarde na igreja. E hoje, passados vinte anos, posso dizer que sim, somos uma família feliz.

Minha irmã, a quem, assombrosamente, eu já conhecia antes de saber que era minha irmã, sempre teve lugar em nossa casa. No início era esquisito, mas depois a relaçao começou a fluir, como um rio que corre sem barreiras. Como uma vida que anda sem segredos.

Fisicamente, eu e ela até que nos parecemos, mas as semelhanças param por aí. Temos personalidades totalmente distintas e, talvez por isso, não tenhamos cultivado uma boa amizade. Na verdade, com os anos, nosso contato diminuiu bastante, ainda mais depois de minha vinda para a Espanha. Não é por mal, sabe. É que o tempo, ainda que a gente queira, nem sempre dá conta de tudo.

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