Maíra Matrone
Clube da Escrita Afetuosa
3 min readMar 31, 2022

--

O CANTO DA AGULHA

À primeira vista me intrigou como uma agulha tão fininha podia cantar. Que engenhoca era aquela que fazia um disco rodopiar e que ao contato delicado de uma simples e leve agulha emitia som? Como eu nunca me interessei por desvendar engenhocas me ative ao som e as palavras cantadas saídas da caixa.

A atração principal era a vitrola, mas aquele aparelho ainda contava com um rádio e um toca-fitas. Na parte de baixo um armário sem portas guardava os LP´s, as estrelas de todo o aparato. O “som” — como chamávamos o conjunto dessas peças — era um luxo da nossa casa, e meu pai era o seu tutor. Ele amava tudo que era inovador. Geminianos têm a cabeça no ar, no subjetivo, no abstrato. Sim, pasme! O nosso “som” era inovador no início dos anos 80.

Aos sábados, na hora que antecedia o almoço, ele escolhia um disco de acordo com seu estado de espírito, e a magia começava.

Começava pela capa. As capas dos discos eram arte pura, eu ficava horas desvendando os detalhes impressos naqueles cartões. Elas nos avisavam sobre o conteúdo escondido no prato. Eram resenhas feitas de imagem.

No meio do acontecimento tinha um micro acontecimento, meio bobo, mas a sensação que ele proporcionava ainda está cravada na lembrança: o plástico que protegia o vinil. Sempre que eu ouvia o som do disco saindo do seu invólucro, era sinal de que a música estava batendo na nossa porta.

Por fim, era a vez do prato. Era preto, na maioria das vezes, e suas linhas perfeitamente marcadas dentro da circunferência dividiam as canções. Eu podia contar quantas canções continham em cada prato, do lado A e do lado B.

Aos poucos fui me achegando para provar que eu era merecedora de manejar a engenhoca, sem causar danos. O tutor me autorizou mediante treinamento e testes. E foi ali que minha vida tomou um novo rumo. Na vida, os caminhos são diversos e por destino, acidente, acaso ou intenção a gente se depara com pessoas, animais, forças da natureza, arte que abrem nossos olhos para caminhos não antes imaginados. A vitrola abriu meus olhos através dos ouvidos.

Desde então, nunca começava uma brincadeira sem escolher um vinil para girar.

E as canções davam o tom.

Voa, macuco
Voa, viúva
Utiariti
Bico calado
Toma cuidado
Que o homem vem aí
O homem vem aí
O homem vem aí

Quando a agulha começava a cantar isso, eu ficava aterrorizada, escondida atrás do sofá esperando o homem chegar.

Mas existia também o alívio cômico, e na hora que a agulha cantava

Veio o camelô vender anel
Cordão, perfume barato
Baiana vai fazer pastel
E um bom churrasco de gato

Eu ria, imaginando a confusão. Sem entender muito bem que o verso seguinte cantava um corpo estendido no chão. As crianças nascem com um filtro para não entender o que pesa para elas.

E foi assim por muitos anos até que comecei a decifrar com mais precisão as entrelinhas dos textos que eram cantados no meu “som”. Com o tempo e com a compreensão, as canções foram fazendo mais sentido na minha vida. Elas me ajudaram a superar tristezas, a exorcizar raivas, a comemorar alegrias. Elas me forjaram e continuam fazendo seu trabalho.

Ritmo, harmonia, tempo, dissonância, poesia. Tá tudo aqui.

A vitrola e seu tutor não são mais tangíveis. Faz tempo que não os vejo, mas posso ouvi-los. As canções que antecederam os almoços de sábado ficarão para sempre.

Desafio 04, março 22

--

--

Maíra Matrone
Clube da Escrita Afetuosa

Um caldo de histórias vividas e lidas. Autora do @cantehistoria, perfil que conta a História através da Música.