O cliente blasé

Barbara Fonseca
Clube da Escrita Afetuosa
6 min readApr 12, 2022

Vinha todos os domingos ao restaurante, invariavelmente com aquela mesma atitude. Exalava desinteresse. Com tudo e todos. Para a maioria, ele passava despercebido, como uma leve brisa que entra pela janela. Mas não para ela. Para a garçonete do lugar, o frequente comensal era um incômodo, uma pulga atrás da orelha, um vento chato que levanta os papéis, desarrumando toda a casa

Atendê-lo era um martírio. Exigia um exercício investigativo para decifrar os resmungos saídos da boca que quase não se abria para falar. O pedido era completo: bebida — água em temperatura ambiente -, entrada, prato principal, sobremesa e café, dando preferência sempre aos pratos especiais fora do cardápio.

Não deixava escapar qualquer reação: a satisfação com a primeira ou a última garfada, o alívio da sede saciada, o estranhamento a algum sabor. Nada. Apenas comia, entre um e outro gole de água e o olhar perdido na janela.

Ao retirar a mesa, a garçonete voltava à cozinha sem respostas para a corriqueira pergunta do cozinheiro: gostou? Os pratos vazios, limpíssimos, eram a única evidência que ela tinha para oferecer.

Ao final de mais uma refeição, ele pagava a conta e acenava com a cabeça. Se levantava e ia embora, deixando para trás uma atmosfera inquietante. Por um lado, estava claro que a comida era do seu agrado, afinal de contas, ele voltava toda semana. Mas por outro, se ele estava tão satisfeito, como podia agir com tamanha indiferença?

O cliente blasé, como a garçonete o apelidou entre os colegas de trabalho, devia ter seus 60 anos. Trazia no corpo achatado indícios de sua personalidade: os ombros curvados, talvez por timidez; o tórax inclinado para trás, apoiado sobre a barriga, como se lhe faltasse ânimo; o andar arrastado, de quem já não tem pressa ou vontade.

No último domingo, como de costume, o cliente chegou e sentou-se sozinho na mesa de sempre; aquela da esquina, sob o quadro vermelho com os dizeres cozinhar é um ato revolucionário. O roteiro foi o mesmo: o pedido sem trocar olhares, os pratos limpos de volta à cozinha, a partida fria.

Mas ali, na mesa, uma bolsa de lona esquecida trazia um novo rumo para esta história sem graça. A história sem sal não só de um homem de meia idade, aparentemente desinteressado com a vida, mas, também, de uma garçonete. Uma jovem de cidade grande, trazida por uma série de circunstâncias a uma vila no meio do nada, onde não conhecia ninguém. Duas almas entediadas cujos destinos se esbarraram naquele restaurante.

Despistadamente, a garçonete agarrou a bolsa e correu até a dispensa. Deixou seu bloquinho de notas e, com as pontas dos dedos, começou a tatear o tecido, à procura de alguma pista para a alma do cliente blasé. Foi como pôde identificar, um a um, a forma de objetos de cozinha, como conchas, colheres de pau e um pilão, além de livros e uma pasta de papéis.

Trim, trim, trim, o chamado do telefone irrompeu no ambiente. Estabanada desde criança, a garçonete, no susto, viu a bolsa escapulir de suas mãos, revelando no chão todo o seu conteúdo. Restaurante Abraço, boa tarde, disse ela no aparelho com voz ofegante.

Ao escutar a voz masculina do outro lado, a garçonete não teve dúvidas de quem era. Sim, senhor, encontramos a sua bolsa. Pode vir buscar. Rapidamente, ela recolheu a bagunça, mas um detalhe capturou sua atenção. Era o folheto de um almoço beneficente de Páscoa, marcado para a próxima semana no asilo de idosos do bairro Gaivota, uma comunidade rural a poucos quilômetros dali.

Como se duvidasse dos seus próprios olhos, ela aproximou o papel do rosto. Era ele. Com um sorriso de uma orelha a outra, oferecendo um bonito prato à câmera, a foto do cliente blasé reluzia no panfleto. Venha desfrutar de uma deliciosa comida preparada por nosso querido cozinheiro, dizia o anúncio.

O cliente blasé se convertia, então, em Godofredo, engenheiro e cozinheiro autodidata, voluntário do centro de acolhida de idosos. Bingo! A garçonete tinha uma pista.

O repique do sino ao abrir da porta arrancou a moça de sua euforia, devolvendo-a de sopetão à realidade. Foi a passos rápidos e desajeitados até a entrada. A bolsa pendurada nos braços e, provavelmente, as mãos geladas de suor, como sempre lhe acontecia em situações deste tipo.

O rosto carrancudo que a aguardava era o mesmo de todos os domingos, mas em nada se assemelhava às feições simpáticas de Godofredo, a quem a garçonete acabava de conhecer naquele folheto. Com poucas palavras, a bolsa foi entregue ao dono, que partiu sem nem imaginar os acontecimentos anteriores.

Na manhã do domingo seguinte, a garçonete estava no ponto de ônibus. Era o seu dia de folga e poderia fazer outras coisas. Uma delas seria passar o dia afundada em nostalgia, lamentando tudo o que havia deixado para trás e revivendo a alegria das Páscoas de outras épocas que nunca mais vão voltar.

Parecia uma ideia tentadora, não seria a primeira vez, afinal. Mas a jovem sempre teve a imaginação como sua melhor amiga. Era uma amante de histórias, apesar de que, nos últimos tempos, havia se esquecido delas. Mas aquela bolsa a fez lembrar de que ela nunca precisou de ninguém para viver aventuras. Por isso, naquele domingo, a garçonete estava no ponto de ônibus, rumo ao bairro Gaivota, seguindo os passos de uma nova história.

Ao meio dia a jovem chegou ao seu destino, um casarão incrustado em uma bucólica paisagem. O almoço aconteceria no quintal, uma agradável área sombreada pela copa de mangueiras. Contou doze mesas grandes, espalhadas pelo gramado. Ao vê-las completas, a garçonete ficou perplexa consigo mesma por estar ali. Quis dar meia volta, mas era tarde. Uma simpática senhora se aproximava para dar-lhe as boas-vindas.

A moça inventou qualquer coisa para justificar sua presença ali, mas anfitriã não queria explicações. Agarrou o braço da moça com gentileza e a conduziu a uma cadeira vazia na mesa de uma grande família. Foi acolhida como se fosse uma deles.

Um dos rapazes sentados ao seu lado lhe passou um papel com o menu do evento. E qual foi a sua surpresa ao encontrar, ali, três dos últimos pratos especiais servidos no restaurante Abraço.

Antes de esboçar qualquer reação, a garçonete seguiu com os olhos pelo papel até chegar a uma frase escrita no pé da página. Agradeço o restaurante que, como o próprio nome diz, se tornou meu refúgio nesta fase difícil. Ao ler aquelas palavras, a moça ficou muda e, como se buscasse respostas, virou o rosto para o rapaz.

Ele lhe contou que Godofredo, o cozinheiro, era seu pai. E que, há duas semanas, a família havia perdido a matriarca, avó do garoto. Ela vivia naquele asilo e, nos últimos anos, já não conseguia se lembrar de coisas simples, como o nome de pessoas próximas.

Godofredo, de quem a idosa já não se recordava, começou a cozinhar no asilo como voluntário, assim poderia estar mais próximo da mãe e, quem sabe, resgatar nela memórias afetivas através da comida. Godofredo, o Godô para a família, sempre gostou de cozinha, mas acabou estudou engenharia para agradar o pai.

Segundo o rapaz, a partida da avó foi serena e, graças ao empenho do pai, a anciã pôde provar pequenas alegrias no final de sua jornada. Uma experiência feliz também para os outros moradores do asilo, que faziam verdadeiras viagens imaginárias ao provar os temperos de Godofredo.

Aquelas histórias de afeto tocaram a garçonete, que se lembrou de sua própria família. Sentiu saudade, mas também alegria por suas memórias, para onde sempre poderia voltar. Decidiu ir embora antes que Godofredo a visse. Não sabia qual seria sua reação ao encontrá-la ali. Assim, provou alguns petiscos servidos à mesa, agradeceu a companhia daqueles estranhos e se foi.

Mas antes de passar pelo portão, olhou de longe para Godofredo. Queria se assegurar de que a imagem do cliente blasé, o tipo carrancudo do restaurante, se esfumaria em sua cabeça. Em seu lugar renascia, não em vão na Páscoa, um senhor sorridente e espontâneo, vestido com uma camisa vermelha na qual se lia cozinhar é um ato revolucionário.

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