O paciente doutor
Era o quarto médico que ela ia em menos de um mês em busca de um diagnóstico. Chegou à clínica cansada. Foi a última a ser atendida, um encaixe na agenda. Sentou-se de frente para o doutor e a queixa do corpo ficou para depois. Ela precisava antes desabafar. Contar como se sentia sendo jogada de um consultório para outro.
O médico do coração a ouviu sem interromper e, ao fim, admitiu que a medicina precisava mesmo se reorganizar e voltar a formar bons clínicos gerais, que olhassem o paciente como um ser inteiro e não dividido em órgãos. A paciente considerou um bom começo de conversa e teve paciência de contar mais uma vez a mesma ladainha de queixas.
O doutor ouviu com igual paciência e corrigiu: não era ladainha. A mulher se animou com a escuta e contou que um amigo tinha sido operado da próstata por um robô, com o médico fora do centro cirúrgico, em outra sala, comandando a máquina por uma espécie de videogame.
- Se os médicos um dia cansarem de ouvir a gente será que os robôs aprendem?
Os dois ficaram na dúvida. Por falar em dúvida, o médico do coração repetiu o exame já feito, pediu mais um, quase pedindo desculpa por isso. A paciente já esperava o pedido, estava resignada.
O médico digitava o pedido quando a mulher teve interesse de perguntar ao doutor porque ele escolheu o coração para cuidar. Ele parou o que fazia e foi contar a história. Avisou que seria o lado romântico da escolha.
A família do lado do pai sempre teve que lidar com problemas cardíacos e ele acabou se interessando em entender como bate e sofre um coração. Revelou que, no último ano de faculdade, perto da formatura, ele encontrou o próprio pai caído no chão. E teve de dar o primeiro e mais difícil diagnóstico da vida: mal súbito. O coração do pai tinha parado de bater, assim do nada, aos 60 anos.
A paciente marejou os olhos e viu o mesmo nos olhos do doutor. Eles se encontraram nas suas dores. A paciente deixou o consultório já de noite, nem as secretárias estavam mais esperando. Saiu menos cansada do que entrou. O doutor quis ficar um tempo a mais e se sentou na cadeira onde se sentam seus pacientes.
Viu, do outro lado da mesa, o jovem estudante que não teve tempo de salvar o pai, mas que soube seguir em frente para salvar outras vidas. Lembrou do recente e longo tratamento da esposa, de como, de novo, teve que buscar forças para continuar. O médico se levantou e foi abraçar o estudante de medicina deixado sozinho lá atrás. Pediu que ele não mais se cobrasse tanto.
O doutor pegou as chaves do carro e trancou o consultório. Ele também saía menos cansado do que entrou.