Carmenpalheta
Clube da Escrita Afetuosa
3 min readJun 20, 2022

--

O PACOTINHO

Desafio #02JUN22

A parada estratégica no prédio do amigo ocorria todo final de semana. Impreterivelmente. Fizesse noite quente ou chuvosa, com céu estrelado ou fosco, era pit stop obrigatório. Roberto entrava no carro e já sinalizava pra Ana, a namorada, que precisavam pegar a encomenda que havia sido deixada na portaria. Aliás, o que era suspeitíssimo é o tal amigo nunca aparecer para fazer a entrega em mãos. Ana não questionava; limitava-se a dirigir até o local e lá retornar somente na sexta-feira seguinte. Claro, com outra daquelas embalagens.

Enquanto o namorado descia pra apanhar o pacotinho, ela ficava no carro, com vidros fechados e motor ligado. Era uma estratégia, caso surgisse uma viatura da polícia e perguntasse por que cargas d’água ela estaria ali, parada, àquela hora da noite. Iria fingir uma manobra e sair rapidinho, sem deixar rastro. Posicionava-se com marcha engatada e pé no acelerador. Largaria namorado e pacotinho, no caso de uma fuga repentina.Não saberia ao certo por que escaparia, mas ficar ali, esperando o tal pacotinho, ah, isso ela não ficaria, não.

Nunca precisou colocar o tal plano em ação.

Voltemos à encomenda. Ela possuía um código visual: Era embalada em formato quadrado, com sacos grossos de plástico preto; muito bem lacrada e sem chance de saber-se o conteúdo.

Certa vez, Ana precisou comprar fita adesiva. Era pra finalizar os volumes dentro do estabelecido no trato: Pacotinhos entregues, pacotinhos devolvidos no mesmo padrão ao remetente. Até os porteiros do prédio já conheciam o código.

- Ah, o senhor veio pegar o pacotinho, né? Diziam ao namorado.

Houve um dia, porém, que um deles pediu que Roberto assinasse um papel. Pra certificar que havia recebido o tal embrulho. Voltou ao carro, contrariado:

- É porteiro novo, só pode! Pediu assinatura, acredita? Muito estranho isso, observou. Ana concordou incisivamente. Não queria desagradar o namorado. Porém, na cabeça dela, imaginou ser um policial infiltrado nos quadros da portaria. Estava ali apenas pra observar o vai e vem dos volumes quadrados e compactos. E, principalmente, ter uma prova incontestável de quem os recebia.

A cena se repetia: o namorado, de posse do conteúdo, entrava no carro como um menino que acabara de ganhar um brinquedo novo: — Vamos!

- Quantos foram hoje? Estão todos aí? Vai ficar com todos ou apenas usar e devolver depois? Perguntava Ana, mesmo sem saber o que havia dentro, só pra ver se captava algo a partir da cara de satisfação de Roberto. Porém, a ansiedade nunca cedeu lugar à curiosidade. Ele só abriria a encomenda quando chegasse em casa. E, de preferência, longe dela.

Entrava e saía semana, e os pacotinhos iam e vinham. Certo dia, o número de entregas e pedidos começou a escassear. O amigo mudara de endereço. E no novo, até Roberto achou melhor “não dar mole”, pra não gerar comentários maldosos. A era dos pacotinhos havia chegado ao fim! Ou será que agora eles eram entregues via aplicativo de celular?

Ana preferiu não saber detalhes. Melhor assim. A ignorância, nesses casos, poderia salvar-lhe a vida. Porém, verdade seja dita: os finais de semana nunca mais foram os mesmos sem aqueles corriqueiros, obscuros e estranhos caronas noturnos.

--

--

Carmenpalheta
Clube da Escrita Afetuosa

Jornalista por formação e escritora em formação. Ambas por pura paixão pela palavra.