O singular e o perecível

Angela Halat Portugal
Clube da Escrita Afetuosa
2 min readApr 7, 2022
Foto: @dani_franco

Criança era o que não faltava naquela casa. Os doze filhos de dona Tereza fizeram brotar naquela família uma infinidade de netos. Todos sempre famintos, barulhentos, nariz escorrendo, pedindo banho. Uma intensidade tal que tornava exaustivo o mero existir naquela família. O coração batia acelerado como se, a qualquer momento, alguém fosse quebrar um prato, roubar um doce, gritar verdades ou gargalhar enquanto dividia uma melancia com o vizinho. Nada ali era sutil, nem minúsculo.

Nada, exceto Vó Lina. Mãe de dona Tereza, a anciã era a bisavó de toda aquela criançada. Velha e reclusa. Num contraste com a intensidade da casa, Vó Lina existia para nós por poucos minutos. Uma ou duas vezes por dia saía do quarto para tomar seu café com bolachas. E voltava para lá rapidinho, levando sempre nos bolsos um docinho qualquer.

Ninguém lembrava da voz de Vó Lina. Alguns até duvidavam que ela tivesse falado um dia. Cabelos brancos e um vestido azul. Rugas que, como trincheiras, escondiam qualquer sorriso. Um ar de impaciência de quem já viveu demais. Embora sempre pacífica, Vó Lina era, na imaginação das crianças, o que mais se aproximava das bruxas.

Mesmo com a porta sempre aberta, seu quarto era para nós intransponível. Entrar lá nunca foi proibido. Mas nenhuma criança ousava invadir aquele universo com cheiro de mentol, colchas de crochê e oratórios enfeitados com flores de plástico. No máximo, espiavam da porta e corriam alvoroçadas a qualquer pigarro ou gemido.

No quarto, havia, porém, algo que instigava a curiosidade dos pequenos. Na descrição dos mais velhos, Vó Lina era cainha. Chamar de mesquinha talvez fosse um exagero, mas os anos de carestia tornaram a bisavó pouco generosa e nada indulgente.

Todos os docinhos surrupiados após o café eram cuidadosamente escondidos atrás de um oratório, fazendo crer que essa pequena avareza tivesse a cumplicidade divina. Não comia, não dividia com ninguém. Seu prazer vinha de apreciar aquele pequeno tesouro como se, com ele, pudesse estender a sua permanência na terra.

Seus bisnetos (sujos e barulhentos) tinham um futuro inteiro pela frente. Deles não tinha inveja, nem esperança alguma. Vó Lina, sim, se achava feliz. Era dona de um pequeno e perecível tesouro. E, numa casa em que tudo era plural, tinha conquistado o direito a uma existência singularmente sua.

Clube da Escrita | Desafio 01abr22

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Angela Halat Portugal
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Nerd e curiosa desde sempre. Interesses tão variados como um armazém de secos e molhados. Nado, trabalho, vivo, leio e às vezes escrevo.