Objeto afetivo

Gislaine Aidar Trindade
Clube da Escrita Afetuosa
3 min readMar 31, 2022

Desafio 4.3

Não sou muito apegada a objetos afetivos, quase tudo para mim tem um prazo, um ciclo, começo, meio e por fim.

Porém, vasculhando cuidadosamente a minha memória, me lembrei de uma latinha de metal azul escuro que meus pais guardavam dinheiro para as despesas da semana. O dinheiro ali poderia sobrar mais nunca faltar, pois, não havia reposição antes do próximo domingo. Todos da casa sabiam da importância da latinha nas nossas vidas.

Esta latinha era como um cofre coletivo sem senha, um local sagrado com acesso restrito aos irmãos mais velhos. Mérito de quem já tinha idade para mexer em dinheiro.

“Mãe acabou o gás”: -Pega dinheiro na latinha. “Pai preciso ir para a escola em uma aula extra”. — Pega dinheiro na latinha. “Mãe vou à padaria?” Pega dinheiro na latinha. “Mãe, coloquei o troco na latinha”.

Eu não tinha esta autorização para mexer no dinheiro, sequer tocar nela, mas eu admirava aquele objeto. Uma lata de metal azul que guardava além de histórias o ingresso para a fase adulta. A história da latinha começou com a minha bisavó, que costurava roupas simples para a família e as linhas compradas para a costura vinham em latas de metal azul.

Quando meu avô veio do Líbano trouxe a latinha como única lembrança da família. Ele chegou aqui com uma mala pequena de roupas e uma latinha que era da minha bisavó. Dentro dela ele armazenou as memórias, despedidas, medos, afetos, saudades e esperança. Tudo em um único lugar, pequeno, mas gigante. Frio, porém, quente. Solitário, mas com todos que amava ali dentro.

Depois de 4 anos morando no Brasil, casou-se com a minha avó e eles começaram a guardar as economias na latinha. Na casa dele a latinha ficava na estante como uma ponte entre o passado e o presente, Líbano e Brasil.

Os anos foram passando, meus avós tiveram 6 filhos, meu pai foi o primeiro a casar, então poderia pedir o presente de casamento, algo da casa dos pais. O presente escolhido foi a latinha que teve uma nova morada.

Eu e meus irmãos saímos da casa dos meus pais. A tradição foi quebrada. Ninguém levou a latinha, ela ficou no lugar de sempre na casa deles, mas agora sem vivacidade. Ela sempre esteve presente nas histórias que eu contava para aos meus filhos. Pra mim, a intocável latinha, objeto de desejo da vida para uma criança.

Quando completei 45 anos, meu pai com os olhos marejados me disse. “Nunca deixei você mexer na latinha, nem sei por que, mas queria que você ficasse com ela. Ela é uma das coisas mais importante na minha vida. Aqui tem a história e emoção de 4 gerações, ela é sua”.

Hoje a latinha ocupa um lugar de destaque na minha casa, é mais que uma latinha de metal azul, é a nossa história.

Gislaine Aidar Trindade

30/03/2022

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