Onde latidos antecipam tragédias

Ana Rocha
Clube da Escrita Afetuosa
2 min readApr 15, 2022

Quando relembra sua infância, Acácia consegue distinguir com facilidade se viveu algo na cidade ou no interior. Acontece que as histórias de um lugar simplesmente não cabem no outro. Como um corpo que precisa de vestes de tamanhos distintos dependendo de onde esteja.

O que os mais velhos falavam de estrelas cadentes, potes de ouro, lobisomens, só era ouvido lá pra fora. Quando o churrasco já havia passado, a bebida circulado, o luar avançado, aquelas lendas do interior entravam em cena, enchendo sua cabeça de curiosidade. E seus sentidos, de medo.

Ao tentar dormir durante as férias na casa dos avós, os olhos e ouvidos bem atentos a qualquer sinal de que algum daqueles mistérios se apresentasse. Mas bastava voltar para a cidade para que todo aquele imaginário simplesmente evaporasse, dando espaço para a programação da TV, os compromissos da escola, as amigas urbanas e as aulas de natação.

Ao longo da vida, sempre que relembra como seu avô morreu, quando ela tinha nove anos, pensa no absurdo da situação. Algo inacreditável, história de filme. Passadas algumas décadas, se dá conta de que na verdade, por mais triste e chocante que tenha sido, a tragédia parece combinar com o imaginário que cercava sua vivência lá.

No velório, os cochichos davam conta de que na noite anterior os cachorros não haviam parado um minuto. Latiram muito, de uma forma diferente, sem cessar. Mal presságio, diziam. Na manhã seguinte, seu avô e um vizinho foram cortar árvores. Curioso que hoje ela não se lembra bem que tipo de árvores havia lá. Não recorda de brincar entre elas. Apesar da noite que deve ter sido mal dormida, o vô viu com clareza que o ângulo em que o tronco havia sido atingido faria com que caísse exatamente em cima de uma vaca.

Para uma família humilde, de poucas posses e recursos, os animais eram algo a preservar a todo custo. Conta o vizinho que o avô de Acácia se pôs a dispersar a vaca. A situação se reverteu em fração de segundos, agora com Antônio sendo o objeto de alerta. Os gritos avisavam que ele se afastasse, pois a árvore já realizava seu percurso assassino.

A faixa branca na cabeça, que acompanhava a melhor vestimenta para o avô no caixão, não deixava dúvida da brutalidade. Os cães se calaram. A pequena comunidade do entorno se uniu na triste despedida, junto aos familiares distantes. Eles iam chegando com o passar das horas. Na viagem de volta pra casa, Acácia apreciava o céu que começava a clarear quando o carro da família acabara de partir em silêncio. Até hoje não sabe se uma estrela cadente de fato cruzou seu olhar, se era sonho ou sonolência.

#Desafio01abr2022

Texto de ficção, produzido para o Clube de Escrita Afetuosa, de Ana Holanda.

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