Onde você está hoje?
Nós, profissionais de saúde, sob o olhar comum, acabamos por nos confundir. Somos o conforto das nossas roupas mal passadas, a expressão de enfado das noites mal dormidas, os olhos mareados dos dias mal acordados. Moramos também nos nossos passos velozes, a correr maratonas pelos corredores. O nosso café, de caneca repleta, invade este texto como perfume no ar, entre linhas. As mochilas vão às costas a nos lembrar da rotina de plantões. Hoje aqui, amanhã ali. Depois, já não sei bem, preciso olhar a escala.
De forma que, ao encontrar os colegas no elevador do condomínio, no estacionamento do mercado, no sinal prestes a abrir, na calçada do hospital, na cafeteria, no corredor em frente à UTI, na esquina do Politrauma com a Urgência ou dentro da minha cabeça apenas, tornou-se hábito questionar ‘onde você está hoje?’. Exatamente assim. O presente do indicativo exibindo a solidez da sua presença verbal.
O fato é que a astúcia da questão leva-me a lugares outros, inimagináveis. Volto à cama e lá encontro o macio das cobertas. O ninho ainda construído pela noite mal dormida. Ao canto, o pijama estica-se no tapete, como a fazer posições de yoga. A toalha molhada descansa sobre a cadeira, que a acomoda satisfeita, no cumprimento da sua função de móvel de quarto. Absorvo a luz bonita que invade o apartamento, exatamente às 9:47 da manhã. Vejo o arco-íris sobre o branco do piso. Lembro-me de que preciso ligar para a faxineira, pois, ao chão, os fios de cabelo interrompem o passeio do sol. Preciso pagar a luz, penso. Súbito, enquanto digito a linha 18 desta crônica, sou interrompida. Alguém, cara amassada, toca-me o braço e diz ‘então, mulhé, táis por onde hoje?’. No ninho entre lençóis. E você?
#desafio 01mai2022