Paris aos 60

Paola Lima
Clube da Escrita Afetuosa
3 min readJun 15, 2022

Maria Carolina pôs os óculos e sentou-se diante do computador. Não estava muito acostumada a usá-lo, mas a neta explicara direitinho o que fazer. Precisava acessar a página do curso de francês, escolher o que mais lhe agradasse e fazer a matrícula. O cartão de crédito repousava na mesa, ao lado do mouse, pronto para ser usado. O limite era grande, quase do mesmo tamanho de sua ansiedade.

Há poucos meses, seu coração também havia descompassado como agora. Naquela tarde de domingo, o motivo não tinha sido feliz. Geraldo, seu marido, acordou do cochilo depois do almoço com falta de ar. Intuiu a gravidade por conhecê-lo quase como a si própria. Não porque o amasse a ponto de enxergá-lo com alma. O casamento havia sido feliz, muito mais por comodidade de ambos do que exatamente por paixão. Conhecia o marido tão bem por haver cuidado dele durante toda vida.

Do leve mal-estar à internação passaram-se poucas horas. Umas poucas mais e os filhos estavam ao seu lado com a notícia: ele não resistira ao infarto. Naquele momento, sentada na poltrona desconfortável do hospital, a vida como conhecia foi encerrada.

Maria Carolina casou-se cedo, tão logo tirara o diploma de Contabilidade. Namorava Geraldo desde os 15, mas ele foi generoso e aceitou seu pedido de deixá-la ter uma formatura. Chegou a trabalhar no banco por alguns anos, emprego que um amigo do marido lhe conseguiu. Mas a chegada do primeiro filho a trouxe de volta para casa.

A tristeza por deixar o emprego foi esmaecida pela felicidade de ter nos braços aquele embrulhinho lindo e quase sempre cheiroso. A verdade é que não eram os números que a mantinham feliz no banco. Maria Carolina sempre gostou de ver gente. Era a conversa com as pessoas, o entra e sai de tipos tão distintos, que a mantinham disposta e alegre no trabalho.

O primeiro embrulhinho, Bruno, acabou seguido de outros três: Natália, Emília e o caçula, João. A vida então correu ao redor das crianças. Era mãe, cozinheira, professora, enfermeira, motorista. Um vaivém de escola, natação, ballet, festa de amigos. E nisso passaram-se 30 anos.

Ela nem tinha percebido as vontades sendo levadas pelo tempo até os filhos fazerem suas próprias viagens de férias. Um pinguinho de inveja dessa possibilidade começou a virar poça em seu coração. Comentou com Geraldo dessa vontade. Ganhou férias em Portugal quando fizeram 30 anos de casados.

Encheu-se de animação ao embarcar no aeroporto rumo a Lisboa. A empolgação foi se dissolvendo a cada sinal de impaciência do marido em museus, a cada volta ao hotel para a soneca obrigatória após o almoço, a cada negativa para ir ao teatro porque sair à noite era perigoso. A frustração por escapar a oportunidade de não fazer o que gostaria acabou sendo maior que a felicidade da viagem. Desistiu de outras.

Assim chegaram àquela noite de domingo no hospital. Depois do abraço acolhedor dos filhos, velório, enterro, inventário, casa vazia. Maria Carolina sentia falta de presença na casa. Deu-se conta de que, agora, ela seria sozinha. A saudade do marido foi dividindo espaço com uma ideia que surgiu devagarinho.

E se eu…

De “e se” em “e se”, chegou ao curso de francês. Geraldo a havia deixado em uma situação financeira confortável. Os filhos, crescidos, tinham suas vidas encaminhadas. E se fosse passar esse tempo na Europa? E se enfim pudesse fazer o que sempre sonhou: ver gente e conhecer lugares?

Os dedos agora corriam rápido pelo teclado, preenchendo a ficha de inscrição do curso que escolhera: 30 dias de imersão em Paris. Nome? Maria Carolina Pereira. Idade? 61 anos. Mas, sinceramente, podia botar 16.

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