Perdidamente

Sonia Marques
Clube da Escrita Afetuosa
4 min readJun 9, 2022

Desafio 01jun22 — Clube da Escrita

fonte: pixabay.com

Dia desses, estava fuçando na internet, querendo encontrar fotos dos anos 20 da região de Porto Alegre e arredores. Não era de varde, como diria minha tia. Meu propósito era compilar informações dos modos e costumes da época, para um texto posterior. Essa viagem no tempo foi tão interessante, que me levou por outras décadas e, quando percebi, estava diante do prédio que adorava em minha tenra juventude.

_ “Maninha, coloca na tua bolsa nossas coisas.” Eu socava, literalmente, dois pacotes de Pastelina e um de balas Azedinhas. Minha bolsinha bege, comprada na Feira de Acari no Rio de Janeiro, ficava estufada. Entretanto, logo, logo, íamos esvaziá-la.

Praticamente todos os domingos, eu, meu irmão e alguns amigos da vizinhança, por volta das duas da tarde, rumávamos, em comboio, ao Cine Marrocos. Andávamos cerca de dois quilômetros pela rua José de Alencar. Plana, sem quebradas. Fazíamos uma algazarra das boas. Bem equilibrada de meninos e meninas; entre dez, na maioria das vezes. Intercalávamos puxões, risadas, flertes e todo tipo de conversas. Mexericos imperavam, é claro. Excitados, quando em frente à Igreja do Menino Deus, dobrávamos na Av. Getúlio Vargas. À direita, o segundo prédio, era o majestoso Cinema. A bilheteria à direita, na beira da calçada. Quando o filme era daqueles esperados, a fila virava a esquina. Mas sempre conseguíamos entrar. O Cine Marrocos era enorme, tinha mais de mil lugares. O teto era em forma de arco. Num único salão, todo azul, fileiras e mais fileiras de cadeiras, culminavam com a magnífica tela. Um desbunde para a época.

Eu ficava encantada com todos os filmes. Chorava, de ficar com os olhos inchados, quando eram tristes. Me tornava o motivo das chacotas no caminho de volta para casa. Antes dos filmes, passava uma espécie de jornal, breve, com as últimas notícias do país. Nem prestava atenção. Queria que o filme começasse logo. Além de abrir as guloseimas. Meu irmão juntava nossas moedas e as providenciava. Não sei se não tinha outras opções ou era as que cabiam no bolso. Fato é que, em todas as sessões de cinema, comíamos um pacote de Pastelina cada um e dividíamos um de balas Azedinhas. Consigo até ouvir o barulho do pacote sendo aberto. Era de um plástico rígido, difícil de abrir. As bordas eram verdes e amarelas, onde estava estampado o nome em vermelho. No meio, era transparente, por onde se enxergava os salgadinhos em forma de pastéis alongados. Cada vez que a mão penetrava no pacote para pegar os pasteizinhos — barulho. Crocante e delicioso. Mastigá-lo — barulho. Atraía os olhares ao redor. Contudo, era um mar de barulhos de pacotes e bocas. Acabávamos por um tolerar e perdoar o outro. Assim que o salgado terminava, hora das balinhas. O saquinho também era medonho de abrir. Não era raro que perdíamos algumas espalhadas pelo chão, quando, depois de tentativas e mais tentativas, o saco explodia. Bem… era o que tínhamos. As balinhas eram tão duras, com doçura duvidosa e sabor bem mais ou menos, que umas a menos acabava por não fazer diferença. Queríamos era diversão.

Não fazia muito tempo que tínhamos voltado da morada no Rio. Anos 70. Mais precisamente 1974. Um domingo foi pra lá de especial, pois chegava ao Brasil o filme “O maior atleta do mundo”. Os cartazes anunciavam a estreia. Aventura, romance, comédia, é o que prometiam. Eu estava radiante, afinal não ia virar a chacota de olhos inchados. Chegamos um pouco mais cedo naquele dia, dada a tanta euforia. Inicia a sessão e já de cara sou tomada por uma paixão súbita por Nanu, o personagem principal. Jesus é testemunha que ele nem fazia meu tipo. Loiro, cabelos compridos, olhos claros. Bem… olhos claros a gente não desgosta nunca a bem da verdade. Nanu era forte, com um corpo recheado de músculos na medida certa. Além de uma doçura ingênua, de fato apaixonante. Ah, Nanu! Não lembro ao certo como era o enredo. Nessas alturas, não via nada na frente, ao lado ou atrás. Não lembro nem da Pastelina, nem das Azedinhas naquele dia. Só Nanu, Nanu, Nanu.

Naquela época, a gente comprava um ingresso para a sessão e podia ficar na sala de cinema para a próxima exibição, após um pequeno intervalo. Algumas vezes de filmes diferentes, outras do mesmo filme. Creio que quando o interesse do público era maior, repetiam o filme. Não ficávamos mais de uma sessão. O retorno para casa tinha seu limite de horário acertado com os pais. Por certo, você deve estar imaginando que neste domingo especial que me refiro — domingo de Nanu — eu queria ficar para a próxima sessão. Certamente! Meu irmão e amigos tentaram me convencer que não seria prudente desrespeitar o limite de retorno. Que o filme não era tão espetacular assim para esse risco. Mas… eu estava apaixonada. Perdidamente. Você talvez não saiba, eu era um tanto teimosa. Mesmo sabendo do perigo daquela decisão, resolvi ficar e assistir meu Nanu. Meu irmão e os demais foram para casa. Fiquei. Sozinha no cinema.

Por certo, você já deve estar imaginando o desfecho desta história.

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Sonia Marques
Clube da Escrita Afetuosa

Aprendiz de escritora - @sousoniamarques Compartilhando experiências - formada em Adm Florianópolis/SC