Piadista Inveterado

Sonia Marques
Clube da Escrita Afetuosa
4 min readJun 22, 2022

Desafio 03jun22 — Clube da Escrita

fonte: pixabay.com

Elogio ou censura? Essa era a forma particular que meu pai intitulava meu irmão. Pelo tom que usava — era xingamento!

Nosso pai não era afeito ao bom humor. A questão é que meu irmão era, e é, um dos caras mais bem-humorados que tive a oportunidade de conhecer. E a delícia de conviver. Desde que me conheço por gente, ele me faz rir. Ele zombando de tudo. Eu rindo. Rindo muito até doer a barriga. Doer a boca de tanto ficar escancarada. Salvando-nos.

- “Piadista Inveterado!” Nosso pai esbravejava.

- “Sabe por que teu irmão é assim? Porque tem plateia!”

A culpa ainda era minha. Já apanhamos muito — o piadista e a plateia.

Se você me perguntar o que de fato ele diz ou faz, eu respondo — simplesmente qualquer coisa que ele faça ou diga tem, o que se costuma dizer, “presença de espírito”. Além de enxergar a vida de uma perspectiva divertida. Os perrengues que costumam atordoar qualquer ser vivente, sob seus olhos tornam-se motivo de causos engraçados. Mesmo quando ele é, digamos, a vítima.

- “Senhor, sua chave.” Meu irmão e sua esposa, retornavam de uma agradável viagem ao interior do Sul. Local onde já moraram e têm familiares e amigos. Costumam ir de carro e retornar com o porta-malas cheio. Já faz alguns anos que moram em Brasília. Pensaram desta vez em fazer uma viagem mais light. Avião até Porto Alegre, mais oito horas de ônibus.

- “Obrigado.” Seguem para armazenar no guarda-volumes do aeroporto a caixa com as maravilhas que angariaram na viagem. Antes de retornarem, ficarão dois dias na casa de um casal de amigos na Capital. Resolveram não levar a caixa até lá. A caixa enorme, com cerca de um metro por cinquenta cm, pesando uns 40 kg. Que, aliás, deu um trabalhão colocar no carro, tirar do carro, colocar no ônibus (oito horas de viagem), retirar do ônibus, colocar no táxi, retirar do táxi no aeroporto, colocar no carrinho e chegar, finalmente, no guarda-volumes.

- “Meu Deus, já fiz de tudo, não entra.” Desabafa já derretendo. Resolve interpelar um funcionário da companhia aérea, para encontrar um modo de despachar já, os quilos de compotas de figos e goiabadas, geleias, pepinos em conserva, queijos coloniais, salames diversos, pães, biscoitos, erva-mate, açúcar mascavo, vinhos deliciosos do compadre, todos socados na caixa.

- “Senhor, essa caixa só é despachada como carga lá do outro terminal.” Nestas alturas meu irmão já estava achando a solução plausível, até estar diante da porta que separava o terminal de passageiros do de carga. Segue ele empurrando, por quase 1 km, o carrinho bambo pelo terreno irregular. O carrinho emperrava, ele forçava, o suor descia. As gostosuras valem a pena, se convence rápido e segue.

- “Desculpe-me senhor, mas essa caixa não pode ser despachada assim. O senhor tem que ter nota dos produtos, esses vidros precisam estar acondicionados adequadamente. Não será possível ajudar.” Ele tenta convencer o funcionário, sempre mantendo a educação, a elegância e o bom-humor, suas adoráveis características. Em vão. Olha com supostas lágrimas nos olhos o caminho de volta. Era suor mesmo. Respirou fundo e foi. Tudo outra vez.

Resolvem conversar novamente com um funcionário. Alguém tinha que lhes ajudar. Não poderiam abandonar a caixa de maravilhas que os motivava tanto.

- “O senhor poderá despachar como bagagem junto com as malas, caso refaça a embalagem em caixas menores e bem fechadas. No dia da viagem mesmo.” Depois de sumir por quase meia hora. Pois bem, chama um táxi, tira a caixa do carrinho, coloca no táxi, chega na casa dos amigos com o trambolho, tira do táxi e sofre até colocá-la dentro do prédio, no elevador, dentro da casa. No meio da sala do casal. Contar o ocorrido. Ao menos eles entenderam o porquê daquele suor exagerado em pleno junho. Riram muito.

Seguiram rindo esses dois dias, certamente. Meu irmão é um dos caras que conheço mais agradáveis de se conversar. Sabe falar de qualquer coisa. Comidas, músicas, filmes, atualidades, viagens, memórias, perrengues, tudo com desenvoltura, contextos bem elaborados, ar leve e sua dose reforçada de bom humor.

Os dois dias devem ter passado voando. Ao menos quando estou com ele é assim. Quando estamos juntos (não moramos na mesma cidade há muitos anos), o tempo passa rápido demais. Dá para ficar horas, dias e, sem forçar a barra, meses a fio conversando e rindo com ele.

Organizaram tudo em várias caixas pequenas. Embalaram como recomendado. Desce as mil caixas no elevador, coloca no táxi, tira do táxi, coloca no carrinho, empurra até a fila. Empurra. Empurra. Chega ao guichê e começa a despachar.

- “Senhor excedeu o peso. Neste caso, o senhor deverá pagar excesso de bagagem.” Ufa. Meu irmão já estava pensando que não poderia levar, depois de todo sacrifício. Aliviado, dá OK. Vem o valor a pagar. Quase dá um grito. O valor do despacho das caixas era maior que o de toda a viagem. A essas alturas, não tinha mais como voltar atrás. Pagou calado. Embarcaram. Meu irmão conseguiu se convencer que as maravilhas que traziam valiam muito. Eram caseiras, coloniais, tinham valor afetivo, impagável. Se olharam. Riram muito.

- “Maninho, como foi a viagem?”

- “Muito boa!” Conta mil coisas e arremata,

- “A melhor parte foi o despacho das caixas com as coisas que trouxemos de São José do Ouro.

O que trouxeram de tão interessante maninho, indago curiosa.

- “Certamente ouro, maninha!” E começa a contar, com seu jeito especial, o perrengue que teria deixado qualquer mortal maluco. Para ele — muitos risos.

- “Piadista Inveterado!”

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Sonia Marques
Clube da Escrita Afetuosa

Aprendiz de escritora - @sousoniamarques Compartilhando experiências - formada em Adm Florianópolis/SC