Pimenta no c# dos outros

Carly Falcão
Clube da Escrita Afetuosa
3 min readOct 26, 2021

Colorida, brilhosa, vibrante. Ela era assim. Mostrava valor. Jogava todo o charme. Vivia num pé verde e viçoso, que se espalhava pelo muro. A entrada ficava era bonita. Mas nossa relação era de longe, platônica. Ela lá e eu cá. Nada de cheirar, tocar ou mordiscar.

Um dia minha mãe me expôs à tentação. Ficou conversando com a dona da casa, bem pertinho da planta. Sem pensar duas vezes, meti a mão. Era lisa, compridinha, nem dura nem macia. Me lembrava um pimentão verde, só que vermelho e menorzinho. Imaginei ser o pimentão da Barbie. “Vou levar pra brincar com as minhas bonecas”, pensei. Depois de encher os bolsos, corri satisfeita pra perto de mainha, pronta pra contar a novidade. Mas no meio do caminho, cocei os olhos, tirei o cabelo da boca, mexi no cotovelo… E em poucos segundos a agonia havia tomado conta de mim. “Ai, ai, tá doendo, tá ardendo”.

Todos vieram me acudir. Eu num sabia contar, nem conseguia falar, só fazia chorar. A mulher logo sacou o que estava acontecendo, mas em vez de me ajudar correu lá pra dentro. Mainha só repetia: “O que foi, Carlynha, o que foi, menina?”.

Me deram água. Foi pior. Suco de limão também não ajudou. Banana, muito menos. Veio até pão torrado, e nada.

Mas aquela mesma mulher fugitiva voltou tempos depois. Trazia um pote de vidro grande, cheio de um creme bege, embolado. As crianças pararam de brincar, os adultos prenderam a respiração. Todos me voltaram a atenção. Ela tirou uma colherada e enfiou na minha boca. Era o doce mais delicioso da minha vida. Talvez fosse de coco ou de doce de leite. Me fazia esquecer qualquer tempo ruim. Pensava nem mais no ardido, muito menos na pisa que ia levar por ter mexido na planta dos outros. Quis repetir, mas — como quem protege uma cumbuca de ouro, como quem guarda o elixir da vida — a mulher se recusou a repetir minha dose. E do mesmo jeito que veio, voltou.

Mainha pediu desculpas por minha trela, me deu um puxão de orelha e partimos pra nosso destino.

Não íamos pra casa e os planos se mantiveram. Todos estavam ansiosos pro passeio, que nem lembro mais qual era. Já eu, continuei com aquele ardor por longos minutos.

Meus primos iam na frente, correndo um atrás do outro, descobrindo coisas descartadas no caminho — lixo pros outros, mas brinquedos pra a gente. Não podíamos levar pra casa, então fuçávamos escondido.

Mas nem isso eu consegui fazer. Fiquei o tempo todo quieta, concentrada na minha dor. O biscoito também não consegui comer. “É bom que sobra mais”, disseram.

Me isolei do grupinho, que seguia feliz. Me indignei com aquele riso solto enquanto eu, presa, queimava. Não era justo sofrer só. Ninguém mais tinha pena de mim. Nem me dava atenção. Era como se nada estivesse acontecendo. A vida seguia.

Descobri ali, daquele jeito, o que alguns só costumam saber anos depois.

Que ainda que me deem água e docinho, todos seguem brincando em seu caminho.

Que a minha pimenta pode ser ruim pra mim, mas pode ser muito boa pra quem dos meus biscoitos estiver a fim.

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