Pinga e frita

Barbara Fonseca
Clube da Escrita Afetuosa
2 min readJun 28, 2022

A alta gastronomia está cheia de técnicas complicadas, de nomes saídos do dicionário francês que poucos de nós, meros mortais, conseguiria reproduzir em casa. Mas se tem uma coisa que aprendi com minha falecida avó Rosa é que, por trás da aparente simplicidade da culinária caseira, aquela de todos os dias, se esconde toda uma sofisticação.

Em defesa de minha teoria, poderia usar como exemplo os doces que ela e as irmãs preparavam na roça, sobretudo sua mítica goiabada cascão. Do corte cuidadoso das frutas às horas a fio de cozimento do doce no tacho de cobre, sobre o fogo vivo da lenha, cada etapa era uma verdadeira alquimia cujo êxito somente pessoas muito sábias poderiam lograr.

E esse adjetivo é o que melhor define minha avó: sábia. Como tantas mulheres forjadas no trabalho do campo, ela entendia das coisas da natureza, dos ciclos das plantas e, como consequência, dos mistérios da própria vida.

Não tinha diplomas. Não precisava. Bastava pouco tempo de convivência para que qualquer pessoa percebesse sua inteligência natural, empregada em pequenos gestos que reluziam em sua forma de estar no mundo.

Me admirava sua maneira de mover-se pelas hortas, pomares e jardins, como se seus braços fossem a extensão das plantas e seus ouvidos entendessem o idioma delas.

Mas voltando à cozinha, para falar de sofisticação, eu não poderia deixar de lembrar daquela chaleira sempre acomodada sobre o fogão. É que minha avó, formada na escola da culinária caipira, conhecia como ninguém a técnica perfeita para cozimento das carnes e, para executá-la, é fundamental dispor de água quente.

O nome dessa técnica não tem nada de rebuscado. Pinga e frita. Simples assim. É o segredo para que carnes de porco e de frango ganhem uma casca douradinha e, ao mesmo tempo, se mantenham suculentas por dentro, quase desmanchando.

A panela deve estar bem quente. Minha avó usava uma de ferro, a mais recomendada. Nela, colocava a cebola batidinha para dourar no óleo. Depois, vinha o alho socado com sal no pilão e aí então, com tudo refogado, acomodava-se a carne.

Quando começasse a formar uma crosta marrom em toda a peça, entrava em cena a chaleira. Um pouquinho de água quente era pingado na panela, fazendo com que a cozinha fosse tomada por fumaça e barulho.

Repetia a sequência até o cozimento completo da carne, sempre alternando o pinga e o frita. Aos poucos, uma borra caramelada ia se formando no fundo da panela, a qual minha avó raspava com uma colher de pau para garantir a cor e a cremosidade do caldo.

Dona Rosa se foi há quase vinte anos, mas a gente trata de manter sua presença viva nas plantas, nas comidas, no cuidado. Não há casa em minha família onde se sirva um lombo ou um frango branco. Isso seria um sacrilégio. Seguimos pingando e fritando, alimentando os pequenos gestos que dão mais cor e sabor às nossas vidas.

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