Por entre bandeirinhas de São João

Patricia Moura
Clube da Escrita Afetuosa
4 min readApr 19, 2022

Todos da vila estavam reunidos em função dos preparativos da Festa Junina. Ou Festa de São João. Como queira. As crianças sempre colaboram com as bandeirinhas. Umas, cortando-as em folhas de revistas velhas. Outras, colando com cola caseira nos barbantes esticados pelas calçadas, feito varal de roupa. Deveriam ser muitas e coloridas para tudo ficar bem alegre. Aquelas ruas que, de repente, tinham mais posses, talvez comprassem os pacotes de bandeirinhas prontas. Essas eram bem mais coloridas e feitas em papel de pipa. Na verdade, papel de seda.

Alguns adultos, geralmente as donas de casa e os aposentados, coordenavam a molecada alvoroçada nessa organização que mais parecia uma bagunceira só. E às vezes era mesmo. Mas tinha que ser assim. Não teria graça se fosse de outro jeito. Era parte do evento. Os mais habilidosos montavam barraquinhas para a oferta das comidarias típicas da festa. As quituteiras de mão cheia faziam bolos de milho, bom-bocado, maçã do amor, canjica, milho verde e quentão. Até cachorro quente e salsichão na brasa tinha para esse ano. Outras coisas eram compradas. Não deixavam que faltasse cocadas, pés de moleque ou paçoca. As despesas eram bancadas pela caixinha de doações da festa e todos os moradores colaboravam com podiam. Outras vezes, cobrava-se pelas brincadeiras e pelas comidas, algum valor simbólico em dinheiro. Apenas para repor os gastos pessoais de cada morador em prol do evento. Importante é que sempre dá tudo certo, apesar da ladainha de alguns insatisfeitos de plantão.

Era o dia da festa. Chegou a hora de usar seu vestido de caipira. Esse ano usaria outro. Aquele que sua mãe encomendou à costureira do bairro vizinho no ano passado para sua irmã mais velha, e que não lhe servia mais. O seu também não lhe coube. Ficou emprestado para a caçula da Dona Ermelinda da casa 08.

Já tinha escolhido as brincadeiras que queria fazer durante a festa. Correio do Amor, jamais! Gostava um pouco da Corrida com o Ovo na Colher, mas ficava meio encabulada de participar porque os mais velhos estavam sempre por lá apostando uns com os outros. Sabia que o ovo era cozido, mas não. Na Corrida de Saco, tinha medo de cair. A rua da vila era de paralelepípedos e morria de medo de se ralar toda. Chorava muito quando isso acontecia e não queria mais que fosse assim. Já era grande. Tinha 11 anos. Melhor mesmo era a Pescaria. Sabia que as prendas estavam muito atrativas este ano porque ajudou a arrumar os peixinhos no caixote de areia. Conseguiu pescar o estojo de 6 canetinhas e o bloco de papel de cartas para aumentar a sua coleção.

Difícil mesmo era dar conta da comelança durante a festa. Provou de tudo um pouco. Só o salsichão na brasa, passado na farinha depois de pronto, foram dois. Incrível pensar que este salsichão tão comum por aqui não existe em outro lugar senão na capital carioca. Mas também comeu o bom-bocado e o milho verde cozido com manteiga derretida. A maçã do amor, nunca mais quis uma desde a festa junina do colégio, anos atrás. Descobriu que por baixo daquele brilho doce de quebrar os dentes só tinha mesmo uma maçã. E nada mais.

A sua bebida era o refrigerante. Guaraná Convenção. Aqueles refris que vinham em garrafas de cerveja. Eram bem mais baratos do que o guaraná Antártica ou a Pepsi. Crianças não podiam tomar nem o quentão e nem o ponche porque eram feitos com vinho. Bebida alcoólica sempre foi proibida para crianças mesmo em festas familiares. Já o seu Jorge da casa 10 trazia sua própria cerveja no isopor. Por conta dele. Juntava-se com o Seu Orlando da 13 e se instalavam nas suas cadeiras de praia, próximos à fogueira. Lá era mais quentinho. Juntos, observavam o movimento da festa sem secar a boca. Certo era o exagero da sede que tinham. Suas esposas sempre recriminavam os senhores. Mas eles pareciam nem se incomodar com a falação. Sempre tinham muito assunto para passar. Foram colegas de carreira do serviço público fluminense por quase 40 anos.

Tudo parecia acontecendo como de costume pelos últimos 8 anos por ali. Mas houve um diferente que foi marcante para os moradores e para a história da vila. Ele não foi socorrido por ambulância. Mas, de carro, foi levado ao hospital. Porém, as facadas foram mais fortes que o senhor. A casa 02, bem no início, era de moradores recém-chegados. Compraram o imóvel do falecido Seu Ismael e abrigaram esse parente. O senhor que ficou hospedado uns tempos por lá. Parece que o responsável pela casa e pela agressão a facadas era o cunhado deste senhor. Não houve polícia no local e a família mudou-se em menos de um mês após o ocorrido. Para as crianças, moradoras e curiosas, contavam sobre uma briga de família que deveriam esquecer. Ninguém conversava muito sobre o episódio, mas, dias depois, ela ficou sabendo nas entrelinhas das conversas dos vizinhos e vizinhas que este senhor importunou as crianças da casa de um jeito que nunca deveria ter feito. As crianças eram seus sobrinhos de 10 e 6 anos. Diziam até que fora pego em flagrante pelo cunhado e pai dos meninos. Daí as facadas. Parece que não tinha sido a primeira vez que ele importunou crianças por ali.

Alguns anos se passaram para que compreendesse como que este senhor deve ter importunado aquelas crianças. Ela disse que essa foi a história que se contou. Por anos depois. E este foi o ano da última festa de São João que ocorreu por lá, também, por anos depois.

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Patricia Moura
Clube da Escrita Afetuosa

Psicóloga e Bordadeira. Eu gostaria que a minha presença pudesse fazer a diferença na sua vida e, de alguma forma, isso faz toda a diferença para mim.