Put*$% que o pariu!!!

Luciana Godoi
Clube da Escrita Afetuosa
2 min readJun 20, 2022

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É difícil imaginar que as pessoas que conhecemos adultas já foram crianças. Minha tia, por exemplo, filha do meio da minha vó, uma das duas irmãs mais novas do meu pai. Na minha memória, não tem lugar pra ela criança.

Por mais que eu tente imaginar, só vejo seu carro vindo de São Paulo, feriado prolongado, virando no trevo lá embaixo e me fazendo descer rápido as escadas pra ganhar logo o que ela trazia no porta-malas.

Tento escutar seu riso de menina, mas não, nunca, nada é mais marcante do que a risada da minha tia: alta, escandalosa, seguida de um palavrão. Sempre seguida de um palavrão.

Não que eu duvide que ela já foi criança, não sou besta, sei que todo mundo é criança primeiro, mas minha tia?

Suas histórias são de centro cirúrgico, de quando colocavam o banquinho pra ela operar, que era pra ficar mais alta e alcançar bem a barriga do paciente, ou de carro lotado, marido, ela, três filhos, toda uma família reunida pra levar minha tia ao trabalho, seis da manhã, porque ela sabia operar barriga, mas não se atrevia a dirigir carro.

Hoje foi a primeira vez que ouvi minha tia contar de quando ela era criança. Contou do jeito dela, escrachada, gargalhada, palavrão.

Primeiro, disse que passava horas cortando pimentão com uma faquinha de brinquedo. Uma lembrança doce, profética, que, na minha cabeça, desenhou-se com solidão. A menina franzina de pele morena, cabelo lisinho tipo índio, pés descalços, chão de barro, mãe brinca comigo? E as horas passando no vai e vem da faquinha de brinquedo serrando o pimentão.

Depois, anunciou que contaria um segredo. Bateu o copo de cerveja na mesa, segurou o braço do meu pai e disse: Ah, já tenho sessenta e seis mesmo, agora vou falar! E falou, de quando menstruou pela primeira vez. Não fazia ideia do que aquilo significava. Arrancou a calcinha suja e enterrou embaixo do pé de ameixa da sua casa de infância. Gargalhada, palavrão.

— É que a mãe não conversava com a gente — ela disse.

Já tem tempo que não espero o carro da minha tia virar no trevo, mas hoje eu esperei por ela, com a mesma ansiedade de antes.

O presente saído do porta-malas, dessa vez, não era meu, mas sim da minha filha, a sobrinha neta que teve a sorte de conhecer minha tia criança, brincando juntas de mercadinho, cortando fruta de mentirinha com faca de mentirinha, abrindo espaço pra lembranças doces, doloridas, de criança, solidão, força e silêncio.

Ela foi embora dirigindo, minha tia, de um jeito ou de outro aprendeu o que era menstruar, aprendeu a dirigir, aprendeu a ser criança de novo. Só não aprendeu a controlar os palavrões, mas, bem, minha tia, né? Ela tem licença poética para dizê-los.

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