Raízes

Lu Rodrigues
Clube da Escrita Afetuosa
4 min readMar 28, 2022

Tem um buraco que mora no meu peito: eu não convivi com os meus avós. E tenho poucas pistas da minha ancestralidade. Quando eu era criança, costumava escalar a prateleira da sala. Bem no alto, na última fileira, meus pais guardavam a caixa de fotos da família. Era lá que eu buscava vestígios da minha origem.

Minha árvore genealógica tem raízes tão intrincadas que eu sempre precisei cavar fundo. Bem fundo.

Retratos em preto e branco dos parentes da minha mãe de Taubaté, no interior de São Paulo. Fotografias dos familiares do meu pai: imigrantes italianos e portugueses que vieram para o bairro do Brás, na capital paulista, no começo do século passado. Eu olhava cada foto com curiosidade. “Esse é meu avô, mãe?” “Pai, essa aqui é a vovó Angelina?” Meus pais gostavam de responder as perguntas e contar histórias. Eles compreendiam a minha busca.

Somente a minha avó materna era viva quando nasci. Mal me lembro dela. A dona Vanda morava longe da gente, em Taubaté. Uma mulher simples e sorridente. Ela foi minha madrinha de batizado. Mas o cargo não veio acompanhado de convivência. Nos víamos apenas uma vez por ano, lá na chácara dela.

A única lembrança que tenho eram dessas ocasiões. A dona Vanda matava uma galinha para o almoço e preparava uma deliciosa macarronada. Lembro-me do gosto do guaraná gelado que acompanhava as refeições. E da pobre ave sangrando no quintal para virar nossa mistura. E só.

Fecho os olhos e a outra imagem que vejo é a da dona Vanda morta no caixão, no meio da sala da minha tia Maria. Era assim que as pessoas velavam seus mortos antigamente. Na sala de casa.

Eu não sei quem foi o meu avô materno de verdade. Descobri depois de adulta que minha mãe é fruto de uma relação proibida. Ela contou que a vovó foi uma mulher muito bonita. E meu avô era um fazendeiro inglês, do qual minha avó foi empregada doméstica. São aqueles segredos de família que todo mundo comenta a portas fechadas. Mas ninguém sabe ao certo o que é boato. E o que é verdade.

Do lado do meu pai, tinha o meu avô português, o seu Manoel. O que conheço dele são as fotos da velha caixa e os relatos de meu pai. Ele conta que o seu Manoel nasceu em Trás-os-Montes e chegou ao Brasil ainda pequeno com o meu bisavô, fugindo da Primeira Guerra Mundial. Um homem de coração bom. Calmo e trabalhador.

Seu Manoel cresceu no interior de São Paulo e chegou jovem ao bairro do Brás, para trabalhar nas fábricas da região. Foi quando conheceu a minha avó paterna, a dona Angelina. Ele era fumante. Morreu de infarto quando eu ainda nem era semente.

Já a dona Angelina era uma italiana de sangue quente. Ela odiava cozinhar e fazia a pior macarronada do mundo. Era quem comandava a casa e aconselhava os três filhos. Costumava arremessar objetos em quem ousava a insultar. Frequentava a Igreja Católica, mas quando as coisas apertavam em casa, ia para o terreiro. Uma italiana umbandista.

Vó Angelina teve demência e também morreu de infarto, quando eu ainda era bebê.

Cresci na casa que meus avós paternos moravam. Cada bloco de tijolo daquela moradia é cimentado de lembranças. Mas a antiga oficina do meu pai é hoje o lugar mais preservado da casa. Um cantinho escondido e pouco ventilado. Que para o meu pai, virou um lugar de memórias da família. É onde ele guarda a estatueta do preto velho da dona Angelina. As ferramentas do seu Manoel. E a caixa de fotos antigas da família.

Quando entro lá, é uma viagem no tempo. Eu fecho os olhos e tento juntar as peças do meu quebra-cabeça familiar. Fico imaginando como eram os meus avós. Como viviam. Qual era o cheiro deles.

Dá uma saudade danada do colo de vó que eu tive tão pouco. Dos beijos e abraços que não dei. E nem recebi.

Na última vez que estive lá, achei uma foto da vó Angelina e do vô Manoel sentados num banco de praça. Sorrindo. E um velho álbum amarelado, com fotos da avó Vanda comigo. Ela me segurava no colo, ainda recém-nascida. Parecia feliz por ser minha madrinha.

Trouxe as fotos para casa. Toda vez que penso que as minhas raízes são emaranhadas, olho para as fotografias. E o que sinto é que meus avós são o meu sangue e parte de quem sou. Não importa o tempo. Eu existo porque eles existiram.

#02mar22

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Lu Rodrigues
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Escritora e jornalista. Aqui publico meus textos da comunidade de escrita da Ana Holanda. Site: www.maenuscritos.com.br Insta:@lurodriguesescritora