(Re)significar

Carlaprates
Clube da Escrita Afetuosa
3 min readJun 8, 2022

Foi assustador acordar e ver os móveis da casa boiando na água marrom. Aquela talvez tenha sido a primeira enchente que passávamos na casa dos meus pais. Talvez a primeira para mim, com meus 5 anos de idade e tão pouco sabedora da vida.

A casa era um sobrado, a primeira que meus pais conquistaram após anos de árdua lida na cidade grande. Não deve ter tido aviso sobre a enchente. Certamente foram arrematados com o trágico acontecimento tamanha aflição que não conseguiram esconder dos filhos. Era grito, correria, desespero.

Pensei em ajudar. Em um impulso comecei a descer as escadas, acompanhada pelo meu irmão, e minha mãe gritou, tão forte e alto, que senti algo doer dentro de mim:

- Fiquem aí em cima. Que merdaaa! Não desçam de jeito nenhum!

O grito dela era agudo. Ela não costumava gritar assim, tinha jeito com as palavras e só se expressava alto para sorrir. Gargalhava às vezes, sobretudo nas festas. Dava para ouvir do lado de fora da casa. Mas naquele dia, além de ser minha primeira enchente, a primeira tragédia da vida, também foi a primeira vez (talvez) que a vi em pleno desespero, descompassada dos seus cuidados em ser gentil.

Só após alguns anos, após acumular mais ocasos na minha vida, entendi a cena completamente. A TV perdida que ainda estava sendo paga nas parcelas. O sofá que tinham acabado de comprar na liquidação, chegou no fim de semana. E ainda era terça-feira. Os objetos de decoração se enchendo de lama, tinham sido escolhidos com tanto esmero. Ou foram regalos de amigos e parentes, simbolizavam tanto amor e carinho. Cada um tinha um significado importante. Mas tudo estava virando lama.

Era assim quando a água baixava. Ficava só a lama e muito trabalho. Muita desilusão.

Talvez também tenha sido meu primeiro contato com a impermanência. Com a força da natureza em guerra com os homens.

E foi assim que vivi meus dias na casa da Rua Marques da Cruz, número 34. As enchentes foram sucessivas e não davam trégua para surpresas. Mesmo com a casa equipada com comporta, as chuvas vinham tão fortes que passavam a medida e vez ou outra invadiam as casas. Tinha gente que se esquecia do acaso ou contava com a sorte e deixava os carros na garagem ou na rua. Saíam a pé ou de ônibus para a lida e, eram avisados pelos vizinhos: “corre que a água está subindo. Já está no pneu do seu carro”!

Imagino a volta para casa nestas situações. O pânico, o ônibus que não chegava, o caminho que ficava mais longo, a hora que voava. Muitos carros foram perdidos assim, boiavam em frente de casa, e a gente sabia: “para esse não tem mais jeito de recuperar”. Enchente deixa um cheiro dentro do carro que não sai mais. E também uma marca na gente que também não se vai.

Eu via tudo do andar de cima da casa. A água começando a subir, o terror que envolvia toda a gente, mas também presenciava uma rede de solidariedade que costuma acompanhar quem sofre junto. Os vizinhos cuidando da casa dos outros, avisando pelo telefone, às vezes chorando junto. Fechando as comportas, colocando as galochas e pegando os rodos para puxar o barro que a enchente deixava. Até o caminhão da prefeitura chegar para lavar tudo com mangueiras gigantes e muito, muito grossas. E como o caminhão demorava… às vezes os rodos e as mangueiras (bem menores) já tinham feito grande parte do trabalho.

Foi ali que também descobri (talvez pela primeira vez) o que era união, viver em comunidade. Uma lição que depois, bem depois, bem depois mesmo, associei com minhas escolhas de vida: trabalhar em ONG, na área social, partilhando e cocriando soluções para as grandes tragédias comunitárias.

De lá de cima da casa dos meus pais, vendo tudo pela janela, às vezes brincava. Afinal era criança! Um dia, coloquei a cabeça para fora e achei de fazer graça:

- “Trabalhem, escravos, trabalhem!”.

Os adultos olharam para cima e riram.

Eu não sabia o que estava dizendo, não tinha ciência da relevância das palavras. Depois, bem depois, bem depois mesmo, entendi que escravidão era uma palavra muito triste e solitária. Que muitos dos escravos não foram abolidos com a tal Lei Áurea. Permanecem escravizados e apartados de seus direitos, confinados nas periferias da grande cidade. E é lá que hoje sou vizinha; avisando para terem consciência, zelando, rindo e chorando, trabalhando junto. Só que lá o caminhão da prefeitura quase nunca ou nunca chega!

#01jun22

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