SEM TRISTÃO

Carmenpalheta
Clube da Escrita Afetuosa
3 min readJun 28, 2022

#03JUN22

Izolda, assim mesmo com Z, não tinha exatamente um Tristão na vida. E até o casamento, foi fiel a todas as leis da igreja; especialmente as referentes aos desejos carnais. E isso sempre lhe fora motivo de orgulho.

Era uma das seis mulheres entre dezesseis irmãos. Mãe de dois filhos, tudo o que fazia era pensando neles; no conforto e sucesso deles. Quase nada pra si. Certa vez me confidenciou que queria ter tido mais crianças. O médico não aconselhou. Ela sofria de epilepsia, uma das poucas razões, aliás, que a fazia faltar ao trabalho; isso no caso de ter tido alguma crise.

Nos conhecíamos há mais de trinta anos, quando entramos juntas no serviço público. De estatura baixa, voz aguda e timbre alto, Izolda era daquelas pessoas que não possuíam “papas na língua”. Falava o que lhe viesse à cabeça; e geralmente nem sempre com palavras suaves. Em sua maioria, eram verbetes largos e imoderados; se me entendem. Mas nem isso significava que fosse movida à razão. Ao contrário, ela era pura emoção. Coração que, a um único toque, poderia se desmanchar em lágrimas. Contudo, jamais a vi chorar.

De jeito esbravejador, às vezes sem medir consequências, tinha o riso como maior antídoto pra fugir da dor. E também o mais perverso veneno, no caso de alguém ousar colocar em xeque suas virtudes mais legítimas; crenças e qualidades. Nessas ocasiões, Izolda se transformava. A gargalhada fácil e escrachada se convertia em escárnio.

Em nome do amor e da religião, tomava decisões nem sempre assertivas. Porém, era a maneira que encontrava pra manter casamento, casa, filhos, e outras condições que lhe eram mais caras. Temas de âmbito estritamente pessoais e intransferíveis. Não se discutia. E nem adiantaria contestar. Ninguém teria ou tem esse direito.

Quando invadia — pois ela jamais entrava, tampouco batia na porta — uma das salas do trabalho, todos já sabiam que vinha algum comentário seguido de gozação pela frente. Se se deparasse com algum funcionário novato, não titubeava: ia logo perguntando nome, sobrenome, registro civil e toda a ficha do cidadão. Se mulher, queria saber sobre filhos, se era casada ou onde morava.

Pensando bem, com ela, ou a gente caía na gargalhada ou se entreolhava pensando que Izolda fazia parte daquele grupo de pessoas dispostas a não mudar maneiras, hábitos e costumes por causa de etiquetas ditas sociais e cheias de hipocrisias e ofensas inconfessas. Não era tão simples aceitá-la em toda a sua autenticidade. E também na ingenuidade que possuía pra entender certas situações. Por vezes, inconveniências de sua parte rendiam desgastes que, com o tempo, eram assimilados como normais. Espécies de lutas que ninguém queria enfrentar.

Odiava injustiças; maus tratos ao público em geral, especialmente crianças e idosos. Quando ia prestar serviços em hospitais, saía de lá e logo providenciava roupas, comida e tudo o que os pacientes do interior precisavam naquele momento de dor. Atitude que denotava toda sua humanidade e empatia perante as dificuldades alheias.

Para muitos, ela era uma louca de pedra. Para tantos outros, uma verdadeira lenda. O certo é que não passava ilesa entre arquivos, papeladas e cenas corriqueiras, e um tanto novelescas, de nosso ambiente de trabalho.

Izolda, assim mesmo com Z — poderia ser inspiração pra alguma história medieval. Não seria exatamente a princesa esperando por algum cavaleiro Tristão. Mais fácil ser a salvadora de muita gente.

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Carmenpalheta
Clube da Escrita Afetuosa

Jornalista por formação e escritora em formação. Ambas por pura paixão pela palavra.