Seu Vicente

Amanda Acacio Rabachini
Clube da Escrita Afetuosa
2 min readNov 29, 2021

Senhor trabalhador. Ganhava na simpatia, mesmo que todos os dias fossem praticamente iguais.

Bom dia, crachá, ônibus atrasou, hoje vai chover, hoje está calor, tenha um bom trabalho.

Era assim que recepcionava a todos no Edifício Vitória, número 347, numa travessa discreta da Av Angélica.

Tinha 60 anos, olhos amorosos de pai experiente, uma cabeleira cheia e constantemente bagunçada.

Cada ruga sua mostrava que a vida não tinha sido fácil. Muitas marcas que para alguns, seriam fundas demais. Mas seu Vicente era amistoso com sua própria carga. Não achava demais nem de menos. Era o que era. Era o que foi. O amanhã sempre era mais esperançoso.

Saia as quatro da manhã de casa, sonolento e agradecido. Mais um dia. Pegava o mesmo ônibus, mesmo itinerário com as mesmas pessoas, mesmas vidas seguindo seus caminhos. Cada um num ponto específico. Trabalhos mais ou menos cansativos. Todos trabalho. Não davam muita alegria, mas garantiam o pão.

Então, numa quinta-feira, seu Vicente estava radiante. Tinha novidades. Batucava os dedos no assento da frente do ônibus de sempre. Sorria mais que o de costume. E tinha aquele olhar de incredulidade e que só aqueles que o conheciam bem podiam notar.

Chegou no trabalho, e seguiu sua rotina. Bom dia, crachá, hoje vai chover, está calor, está frio. Até a próxima. Bom trabalho.

No fim do expediente se despediu emocionado e contou a novidade que guardou com tanto zelo durante o dia.

Arrumou outro emprego. Ganharia mais, menos horas, ofício de homem corajoso e honrado.

Vou trabalhar na Febem.

Todos se espantaram com a novidade. Seu Vicente era o oposto daquele ambiente. Não dava pra imaginar aquele senhor num lugar tão mundano, tão rude, tão machucado.

Ele não pensava assim. Sentiu-se útil como há muito não sentia e queria realmente ajudar aqueles rapazes, ser de algum consolo, inspirar bondade e esforço para que as histórias não se repetissem.

Durou uma semana. Sete dias que o fizeram curvar. As rugas já feitas de dor foram deformadas pela tristeza. Nunca havia imaginado algo assim.

Sete dias e aqueles meninos violentados pela realidade e violentos como defesa não deixaram a bondade de seu Vicente vingar. Foi feito refém, escudo, meio de absolvição e não foi suficiente.

Seu Vicente morreu. Sabia que ia morrer. Sentiu os olhares ardilosos e ansiosos dos meninos que tanto queria ensinar.

Inspirou como quem se afoga. Buscou toda a coragem que tinha em si, se revestiu de humildade, uma camada de ternura e se foi, esperançoso de que mais ninguém chorasse pelo invisível.

Baseado em fatos reais.

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