Sobre livros e rios

Dê-me Guimarães Rosa!

Angela Halat Portugal
Clube da Escrita Afetuosa
2 min readMar 31, 2022

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Ilustração de Thaís dos Anjos

Se a mim fosse dado o poder de escolher qualquer pessoa no mundo para ter uma conversa, certamente eu diria: dê-me Guimarães Rosa!

Seria de início uma conversa cordial para fazer jus aos seus modos de diplomata. Mas se ele se negasse a responder às minhas perguntas, eu o agarraria pela gravata borboleta até que ele revelasse os segredos que tanto me perturbam toda vez que eu leio o conto A terceira margem do rio, da coletânea Primeiras Estórias.

O que é a terceira margem? Por que aquele pai optou pelo silêncio e por um lugar que, ao mesmo tempo, é tão perto e tão longe? Por que ele não cruzou o rio ou não seguiu com a correnteza? Quando o filho se ofereceu para tomar o seu lugar (para depois desistir da empreitada), passava mesmo pela cabeça do pai essa troca de destinos?

Todas essas perguntas borbulham na minha cabeça a cada vez que leio o conto de Guimarães Rosa, uma das minhas obras prediletas. E às vezes sinto-me pessoalmente ofendida pelo fato de o escritor ter nos privado de tantos segredos.

O rio que não é cruzado, a terceira margem que coloca em suspensão a nossa própria vida e a de outras pessoas. Essa imagem se torna ainda mais poderosa para mim quando lembro de Sidarta, de Herman Hesse, outro livro da minha lista de paixões incômodas.

Depois de viver uma vida alternada entre prazeres desmedidos e privações ascetas, Sidarta, personagem principal do livro, só encontra o caminho da iluminação ao atravessar o rio com a ajuda do barqueiro. Só a partir daí, ele se torna tudo aquilo que poderia ser.

Atravessar o rio marca também um ponto de virada na história de José Pellerini, personagem do livro Terra Vermelha, escrito por meu conterrâneo paranaense Domingos Pellegrini.

Desbravador e um dos pioneiros da colonização do Norte do Paraná, José Pellerini só muda a sua história (e muda a si mesmo) depois de atravessar o rio, de um jeito muito mais turbulento do que em Sidarta. Sua iluminação veio aos tapas, lutando contra a correnteza. Mas veio!

Ah, esses rios! Coadjuvantes de peso em obras que eu tanto gosto e que, às vezes, parecem ter sido colocados ali pelos autores para nos distrair ou nos revelar as verdadeiras histórias.

Escritores são bichos zombeteiros: deixam-nos mais perguntas do que respostas. Como sereias de água doce, nos seduzem até a gente entrar no rio. Rios que às vezes a gente atravessa e, às vezes, se deixa ficar.

Desafio Clube da Escrita | #02fev22

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Angela Halat Portugal
Clube da Escrita Afetuosa

Nerd e curiosa desde sempre. Interesses tão variados como um armazém de secos e molhados. Nado, trabalho, vivo, leio e às vezes escrevo.